Um país muito doce

E já que estamos na época de festas e mesmo passado o Natal, é impossível não lembrar logo do Bolo-Rei, quase onipresente em mesas portuguesas. Diz a história, porém, que a iguaria não nasceu aqui na terrinha. No formato parecido com o que temos atualmente (sim, porque há também quem vá ainda mais longe na origem e encontre versões semelhantes da época dos romanos), veio lá dos franceses, do período do reinado do Rei Sol, Luis XIV, apontam os registros. O coitado do bolo, porém, acabou sendo também vítima da Revolução Francesa. Guilhotinaram o Rei do nome do doce, que passou a ser chamado “Gateau des Sans-Culotes”, algo como bolo dos pobres ou mendigos. A chegada do Bolo-Rei em Portugal aconteceria alguns séculos depois, mas o doce também não teve vida fácil por aqui. Com a implantação da república em Portugal, no início do século XX, o “Rei” do nome passou a incomodar e foi substituído por muitos confeiteiros por “Bolo Presidente”, Bolo de Ano Novo” e por aí vai (se fosse no Brasi, poderiam chamar de “Bolo Roberto Carlos”, “Bolo Pelé”, que tal? Ou uma versão baiana, o “Bolo Meu Rei”… Fica a dica!).

Pazes feitas com a monarquia, pelo menos na culinária, o bolo voltou a ter Rei no nome e é o queridinho do Natal. Diz a lenda que a casquinha dourada da cobertura do bolo representa o ouro; as frutas cristalizadas remetem à mirra e o delicioso perfume do doce é o incenso, com uma associação a reis bem anteriores ao monarca francês ou à monarquia portuguesa. Como meu contato com reis se deu apenas com o Rei do Mate e com o Rei da Pamonha, como o bolo rei sem qualquer culpa histórica ou política.

Bilharacos ou sonhos de abóbora, doce tradicional português nas festas natalinas. Foto: Tuga Vegetal.

Mas quem não quiser entrar neste imbróglio, tem várias outras opções de doces agora nesta época. Hummm… vamos de Bilharacos de Abóbora? Os bolinhos fritos que levam abóbora na massa são cobertos de canela e açúcar. O doce é da região de Aveiro, mas há também versões em Coimbra, com o nome de Belhoses. De certa forma, lembram um pouco os nossos bolinhos de chuva. Quer mais? Azevias! Os pequenos “pasteizinhos” se assemelham ao formato de um peixe (justamente o Azevia) e costumam ser recheados, por exemplo, de batata-doce, abóbora, amêndoas, doces de ovos e por aí vai. Diz a história que a iguaria teria nascido nos mosteiros de Coimbra, ainda com outro nome, e que passaram a ser conhecidas por Azevias quando ganharam os tachos e panelas do Alentejo. E a lista segue! Outra gulodice doce de Natal são os Coscorões, que é uma massinha frita e coberta com canela e açúcar. Dizem que já eram comidos na época dos cruzados, pois eram fáceis de conservar e de fazer. Há pequenas variações na preparação da massa nas diferentes regiões do país, mas o conceito é o mesmo: bem fininhos, crocantes e com delicioso gosto de canela. E o que falar então das bem conhecidas e clássicas rabanadas, que também aparecem em outras mesas ao redor do mundo, sob diversos nomes? Contam que teriam surgido após uma jovem mulher muito pobre, sem qualquer recurso para alimentar seu filho recém-nascido e já quase desnutrida, foi de porta em porta pedir ajuda. Ganhou pão velho, ovos, açúcar e um pouco de leite. Preparou, com esses ingredientes, uma sopa que lhe deu nova vida e até permitiu que ela voltasse a amamentar. Exatamente por isso é também conhecida como “Fatia de Parida”. 

A receita do Pão de Ló de Ovar tem um truque, que é bater muito bem a gemada antes de juntar a farinha. Foto: SAPO Lifestyle.

Mas como eu bem sei, ninguém precisa vir para Portugal nas férias para comer doces. Tem o ano inteiro e por toda a parte. Aqui na minha pequena cidade, o clássico é o Pão de Ló de Ovar, iguaria cuja denominação foi reconhecida como “Indicação Geográfica Protegida” pela Comissão Europeia há poucos anos. O doce leva gemas, muitas gemas, farinha e açúcar. Vem numa espécie de forma de papel, que vai ao forno e deixa o doce com uma fina casquinha dourada, que mantem o recheio de ovos fofo e molhadinho. O “meu” pão de ló faz par com os Ovos Moles de Aveiro, outro clássico da doçaria portuguesa, com alguns séculos de existência. Lá pelos anos 1500, a então grande produção de açúcar da ilha da Madeira chegou aos mosteiros do continente. Em um deles, o Convento de Jesus de Aveiro, deu-se o encontro do açúcar com as gemas de ovos (havia uma grande produção de ovos numa quinta próxima). A mistura na mão das freiras acabou virando doces de ovos e, ao longo das décadas, ganharam o formato conhecido hoje. Os Ovos Moles são “embalados” em leves hóstias em formatos marinhos (peixes, conchas e búzios) e são praticamente obrigatórios no roteiro de quem passeia por Aveiro.

E os Pastéis de Belém então? Outra obra divina da doceria conventual! O nome vem da freguesia de Belém, em Lisboa, ali ao lado do Mosteiro dos Jeronimos, onde também havia um pequeno comércio local. Com o fechamento de todos os mosteiros e conventos de Portugal, no início do século XIX, uma das lojinhas das redondezas começou a vender pasteis doces, feitos com a receita que nasceu no convento. E as guloseimas logo viraram os “Pastéis de Belém”. A receita, dizem, é a mesma daquelas longínquas décadas iniciais dos anos 1800. De Belém, o doce ganhou o país e o mundo, onde é chamado apenas de Pastel de Nata (de Belém, só em Belém mesmo. E ai de quem disser que os de nata são iguais aos de Belém…). Por aqui, não há pastelaria que não tenha pastel de nata no balcão, quase sempre como o melhor acompanhamento para um cafezinho. “Um café e uma nata, se faz favor!”. Nada mais local do que esse pedido. 

Os Pastéis de Belém proporcionam hoje o paladar da antiga doçaria portuguesa. Foto: Visite Portugal.

Prepare a insulina porque tem mais: travesseiros e queijadas de Sintra. Quem nunca se lambuzou na Piriquita? Calma lá. Estou falando de uma das mais tradicionais pastelarias de Sintra, lar dos travesseiros e queijadas. Estas últimas são medievais e nasceram porque a região sempre teve abundância de pastos e, portanto, de queijo, principal ingrediente do doce. Os travesseiros (sim, o doce tem o formato de um travesseiro), recheados de ovos e amêndoas, envoltos em uma fina massa folhada, não são tão antigos quanto as queijadas, mas tem a receita guardada a sete chaves por gerações. A Piriquita foi fundada em 1862 e se mantém na família até hoje. O nome é uma referência ao apelido que o rei D. Carlos I deu a Constância Gomes, fundadora da padaria junto com o seu marido, por causa da baixa estatura dela. Época em que esses “apelidos carinhosos” não eram ainda bullying…

Ainda não se empanturrou? A lista parece não ter fim, eu sei. Se eu for ficar apenas nos que eu já comi, ainda tem o Pão de Rala, de Évora, outro com origem ligada a um convento. Dizem que o rei D. Sebastião foi visitar o convento, no século XVI, e as religiosas ofereceram apenas pão ralo, azeitonas e água. Era uma ordem com grandes dificuldades financeiras, o que não permitiu que se preparasse algo mais adequado para uma visita real. Apesar de simples, a comida encantou o rei, que passou a ajudar o convento. Como reconhecimento, as freiras desenvolveram a receita que segue, garantem, igual até hoje. 

Esta delícia da doçaria tradicional, ainda é feita, por regra, à moda antiga, mexida à mão e cozida nos fornos alimentados a lenha. Foto: RTP.

Mais recentemente, encarei as Cavacas de Resende, tipo um pão de ló molhadinho que leva vinho do porto na massa e é coberto por fina camada de açúcar. Diz a história que o doce foi pela primeira vez na Idade Média, como um bolo de casamento. O tal casório, porém, teve que ser adiado por causa da peste. E como não queriam jogar tudo fora, o bolo foi conservado até a nova data e servido com a adição de uma calda de açúcar, o que restituiu o sabor e a textura original, além de deixar a massa bem úmida. Mas não vale confundir as cavacas de Resende com as cavacas de Aveiro, um doce diferente, mais consistente, como um pão doce em formato circular que é tradicionalmente arremessado do alto da capela de São Gonçalinho para as pessoas que se aglomeram ao pé da igreja.

Para os “formiguinhas”, as opções nunca acabam aqui em Portugal: muita doçura também nas Arrufadas de Coimbra, um pão doce em formato de coroa, nos Toucinhos do Céu, nos Bolos de Bolacha, nas Babas de Camelo (sim, isso mesmo! Tem doce que se chama baba de camelo. E é muito bom), nos Leite Creme (o que em bom “português do Brasil” é o crème brûlée), nos Pastéis de Lili de Esposende, nas Tripas de Aveiro, nas Bolachas Americanas, nos churros, nas farturas e nas porras (não pensem bobagem…) vendidos em barracas na rua, nos doces “fálicos” em Amarante…

Ufa! Melhor parar porque minha glicose já passou de 100! Um bom e doce 2021 para todos!

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***Marcos Freire mora com a família em Ovar, Portugal, pequena cidade perto do Porto, conhecida pelo Pão de Ló e pelo Carnaval. Marcos é jornalista, com passagens pelas principais empresas e veículos de comunicação do nosso país. Escreve quinzenalmente no São Paulo São.

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