Uma cratera, um hospício e uma mansão no passeio pelos 143 ‘lugares difíceis’ de São Paulo

Diferentemente de qualquer outro guia turístico de qualquer outra cidade do mundo, esse não é dividido em restaurantes, bares, cinemas ou parques. Não que o leitor não vá encontrar parques ou cinemas ao longo das 213 páginas que o compõem, lançado no final do ano passado. Mas os roteiros que traz talvez não sejam necessariamente o destino favorito de alguém que busca um blockbuster.

Os lugares do guia são testemunhas de uma história que envolve menos as atrações turísticas da cidade e mais representantes de segregações, resistências, invisibilidades, morte, moradia, violências de Estado, difíceis lugares fáceis, urbanismos difíceis e outros lugares difíceis, como são as nove categorias que classificam as localidades.

Da mansão ao cemitério

O Juquery foi fundado por Franco da Rocha em 1898 e chegou a abrigar 20 mil pessoas. Foto: Divulgação.

Cada lugar é um convite a um passeio histórico e geográfico da cidade e suas adjacências. Como, por exemplo, o Hospital Psiquiátrico do Juquery, em Franco da Rocha a 40 km de São Paulo. Idealizado pelo psiquiatra Francisco da Rocha e projetado por Ramos de Azevedo, foi inaugurado em 1898, sendo o primeiro hospital psiquiátrico de São Paulo e o maior da América Latina. Classificado na categoria segregações, o conjunto de prédios, depois de desativado o hospital, foi tombado em 2011 por seu valor histórico e arquitetônico e hoje abriga um Centro de Atenção Integral à Saúde Mental e um Centro de Atendimento à Mulher.

Produzido por alunos da graduação e pós-graduação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP, sob coordenação do professor da FAU-USP e do programa de mestrado em Cidades Sustentáveis e Inteligentes da Uninove, Renato Cymbalista, o Guia dos Lugares difíceis é uma enciclopédia urbanística de São Paulo. Além de classificados nas categorias listadas, os lugares são apontados em um mapa que facilita o entendimento do espaço geográfico em que as dificuldades da cidade se encontram. “As categorias foram aparecendo para dar ritmo ao trabalho”, explica Cymbalista. Ele afirma que, após a concepção das categorias, os alunos perceberam que era preciso acrescentar alguns lugares antes não pensados como difíceis, mas que eram imprescindíveis como representantes daquelas categorias.

O edifício Joelma, que pegou fogo em 1974 deixando 188 pessoas mortas. Foto: Agência O Globo.

Além disso, houve o caso de categorias criadas e que depois desapareceram. “Por exemplo, a categoria fogo, que fala sobre os grandes incêndios na cidade de São Paulo”, diz Cymbalista. “Achamos que ela estava pequena, então esses lugares foram recategorizados. A maior parte deles foi parar em morte, mas é uma categoria que ainda pode reaparecer numa próxima edição”. A previsão, segundo o professor, é que uma nova edição do guia seja lançada daqui a uns dois anos. “Quando eu estava fechando o guia houve aquele grande incêndio no Largo do Payissandu, onde morreram muitas pessoas, e ele não aparece porque não dava mais tempo. Esse é um dos lugares que eu gostaria que ganhasse uma ficha na próxima edição do guia”, diz Cymbalista.

Seja como for, um incêndio marco não ficou de fora: o edifício Joelma, que pegou fogo em 1974 deixando 188 pessoas mortas. Outros lugares também se impuseram no apanhado, como a Mansão Matarazzo, alvo de uma disputa de família que pode ter sido responsável pelo desabamento de parte da construção que hoje dá lugar a um shopping e uma torre comercial na avenida Paulista.

Ponte Octavio Frias de Oliveira, a ponte estaiada, um dos "lugares difíceis" de São Paulo. Foto: Danny Lehman / Corbis.

Mas o guia não fica somente no âmbito de prédios arquitetônicos. Em Osasco, o Bar do Juvenal, onde oito pessoas morreram em uma sangrenta vingança conhecida como a chacina de Osasco, lembra que a história da cidade é feita também de conflitos e violência e que se espraia para a região metropolitana. Assim como, em outra ponta do mapa, o nobre shopping Morumbi é um dos únicos da cidade a não ter salas de cinema, depois que um atirador abriu fogo contra 28 espectadores que assistiam ao Clube da Luta, em 1999.

Há espaço também para histórias mais amenas e com finais felizes, embora póstumas. Trata-se das Polacas, prostitutas que vieram a São Paulo trazidas por uma rede internacional de tráfico de mulheres que se estabeleceu em várias cidades. Excluídas e estigmatizadas pela comunidade judaica em geral, em cada cidade em que se fixaram elas criaram sociedades de ajuda mútua, que garantiram a preservação de suas identidades e rituais judaicos, construindo estruturas como sinagogas, asilos e cemitérios. Em São Paulo, as polacas fundaram seu cemitério original na década de 1920, no bairro de Santana, na zona Norte. Caindo em desuso com o envelhecimento do grupo e a morte da maior parte delas, o cemitério foi desapropriado nos anos de 1970, para a ampliação do cemitério público. Foi aí que todas as sepulturas das Polacas foram transferidas para o cemitério principal da comunidade judaica, o Cemitério Israelita do Butantã. Mas, com a mudança, a lista que nomeava os mortos desapareceu e os corpos ficaram sem identificação.

 Túmulos das Polacas no Cemitério Israelita do Butantã. Foto: São Paulo Antiga.

No ano 2000, os arquivos foram enfim recuperados e os nomes recolocados em cada uma das 213 lápides, durante uma cerimônia. A história é contatada na seção de segregações, embora pudesse muito bem estar classificada em resistências.

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Por Marina Rossi no El País. 

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