Viva Lygia! Viva para sempre em nós!

Por Rosane Pavam.

Ela morreu. Uma mulher mais jovem do que eu. Bailarina que dançava na sala do seu apartamento em prédio dos Jardins, ladeado por palmeiras, toda vez que lançava um livro. Em duas ocasiões abriu um vinho do porto pra mim. Sabia de tudo, dos escondidos da vida, da simplicidade da morte, esta que talvez tenha visitado de passagem e onde desaparecemos um pouco todos os dias. Dessas viagens voltava com um riso, não gargalhada, os olhos sapecas, franzidos.

Lygia Fagundes Telles publicou seu primeiro livro de contos, de nome “Porões e Sobrados”, em 1938. Foto: Acervo IMS.

Lygia Fagundes Telles (São Paulo, 1923 – 2022), afastada agora definitivamente de nós, aos 98 anos, no último dia 19, morava em um lugar próximo, ainda que distante. Foi a paraninfa da minha turma de Escola de Comunicações e Artes, lá nos anos 1980, e deu seu banho sem abrir mão da atitude protocolar. Bonita, gozadora, presente. Alguém para quem os ouvidos abertos na direção de Olavo Bilac não impedia sua entrega a Roberto Piva. Olhos, mãos, cabelos, tudo como a razão de uma expressão. Lembro-me sempre dela até porque moro no mesmo prédio onde residiu seu filho.

Carlos Drummond de Andrade, Francisco de Assis Barbosa, Carlos Ribeiro, Manuel Bandeira e Lygia Fagundes Telles. Foto: Acervo IMS.

Ela fumava razoavelmente durante as conversas jornalísticas e eu, que não suporto bem o cheiro de cigarro, nem sentia nada, submetida a uma espécie de básica hipnose. Nem sei, juro, como isso podia ser. Com ela era só sedução. Sabia ser distante, apresentando-se, contudo, cordial. Chegava na gente com sua impessoalidade sorridente, às vezes irritada, também. Fazia da ocasião conosco uma espécie de palco… e recitava. Se me telefonasse para agradecer pelo texto “inteligente” que eu fizera sobre ela, cessavam as borboletas no meu estômago. Porque antes disso era viver sem dormir: e se ela não gostasse, gente? E se não gostar?

Autora era a quarta ocupante da Cadeira nº 16 da ABL, tendo sido eleita em outubro de 1985. Foto: Acervo da família.

Eu a entrevistei muitas vezes. Feliz ou infelizmente mal guardei todos os textos que escrevi. Não presta muito reler o que a gente faz, sob pressão, na imprensa. Mas com Lygia estava tudo certo. Jamais estaríamos nem mesmo próximas a sua altura, e a questão era quase só copiar o anotado, servindo ao leitor.

Fez questão de proclamar a mim o veredito de culpado a O J Simpson, quando o mundo transformara o assassínio por ele cometido em questão racial. Ela não estava nem aí. Caetano Veloso bonito? Como poderia se equiparar a Rodolfo Valentino? Eu ria muito. Até suas paredes falavam. Os quadros que guardava, fotos, desenho de Darcy Penteado, de Carlos Drummond. Um apartamento antigo, móveis de boa madeira. Somente a história interessava como elemento de decoração.

Para a ABL em nota, Lygia “é considerada uma das grandes referências no pós-modernismo”. Foto: Acervo IMS.

Eu queria ter-lhe dito adeus em algum momento, mas me intimidei. Sua neta me abrira as portas para entrevistas, mas faria o mesmo para minha presença tímida e pessoal? De toda forma, talvez eu não aguentasse. Da última vez que fui entrevistá-la perdi o celular no qual fizera fotos. Ela parecia deprimida, embora encorajada. Vivia pela força da paixão por seu filho, para quem construíra um altar onde estavam a foto dele ao lado de seu urso de pelúcia de infância… E o próprio urso, velho, encardido, nos sorria de cima daquela cadeira.Eu nem sei como agradecer a essa mulher por tanto que me deu.

Lygia em seu apartamento em 2010. Foto: Eduardo Anizelli / Folhapress.

Uma vez eu a indiquei para um trabalho, o de falar, sob um bom pagamento, para umas funcionárias de telemarketing que gostavam de escrever. E o que ela lhes disse? Basicamente, que resistissem. “É preciso resistir!” Sem isso não haveria literatura, não haveria Lygia, não haveríamos nós. Mas resistir a quê, não fez questão de explicar. Resistir, entendeu?

Eita que as saudades serão imensas. Vou publicar algumas coisas que tenho sobre ela pela semana. E até um texto inédito em livro, de sua autoria, que ela me mandou por ocasião da edição de Natal do Caderno de Sábado, do Jornal da Tarde, nos anos 1990.

Viva Lygia! Viva para sempre em nós!

***
Rosane Pavam é jornalista com passagens por editorias de cultura dos principais veículos impressos do país.

Tags

Compartilhe:

Share on facebook
Share on twitter
Share on pinterest
Share on linkedin
Share on email
São Paulo São.
O São Paulo São é uma plataforma multimídia dedicada a traduzir o zeitgeist da cidade.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.

Categorias

Cadastre-se e receba nossa newsletter com notícias sobre o mundo das cidades e as cidades do mundo.

O São Paulo São é uma plataforma multimídia dedicada a promover a conexão dos moradores de São Paulo com a cidade, e estimular o envolvimento e a ação dos cidadãos com as questões urbanas que impactam o dia a dia de todos.