Por uma cidade onde mulheres sempre possam pedalar

Foi possível com sua metodologia revelar um traço comum entre as diversas ciclistas: “É a rede em torno dessas mulheres que parece fazer com que elas comecem a pedalar e que permaneçam pedalando — e os exemplos femininos, as mulheres (conhecidas ou não) que pedalam e as inspiraram”, escreveu a pesquisadora. 

Nos anos de cicloativismo e nas tantas cidades por onde pedalou, Marina Harkot inspirou outras mulheres a pedalar, tanto por sua pesquisa aguerrida em como tornar a cidade mais generosa com as mulheres ciclistas, mas também com sua prática política cotidiana. Ela era uma mulher que pedalava, e ao girar suas rodas e guidão em diversos territórios, ela representava a luta das mulheres pelo direito à cidade. 

No dia 8 de novembro, domingo, uma centena de ciclistas se reuniu na Praça do Ciclista, para pedalar e homenagear o trabalho e vida de Marina, atropelada na madrugada do mesmo dia na região oeste da cidade. Pintando no chão a frase “Continue a pedalar, Marina!”, as e os ciclistas também protestavam não só contra o crime* – o motorista que atingiu a cicloativista não prestou socorro e fugiu do local — como também contra as políticas públicas de uma cidade ainda insensível às práticas ciclistas e à vida das mulheres que lutam para legitimá-las. 

Portal Aprendiz celebra seu legado como pesquisadora e ativista compartilhando reflexões levantadas por sua tese de mestrado e que podem contribuir para se pensar em cidades mais afeitas à mobilidade cicloviária e pedestal. Listamos também uma série de iniciativas pelo direito de mulheres a pedalar e a ocupar os espaços públicos.

Por uma metodologia que olhe as mulheres latino-americanas e sua relação com o espaço 

A trajetória como pesquisadora de Marina sempre esteve ligada à questão do direito à cidade e da bicicleta como ferramenta para tal. Ela foi uma das pesquisadoras do LabCidade, produziu levantamentos sobre quem eram as mulheres ciclistas nas cidades onde pedalou e também fez parte do coletivo apē – estudos em mobilidade, que investiga as intersecções entre mobilidade, território e educação.

Mas o que distingue o trabalho acadêmico de Marina é sua intersecção pulsante com a própria prática cicloativista da pesquisadora. Como mulher e latino-americana, suas práticas modais ativas e sua insistência e aguerrido ativismo pelo direito à cidade passavam diretamente por suas vivências com relação à mobilidade urbana. “Fazer uma pesquisa sobre um tema que se vivencia tão intimamente é uma tarefa árdua, pois faz entrar em contato com diversas questões que permeiam a vivência e as experiências da cidade”, escreveu na conclusão de sua pesquisa.

Por viver intensamente a prática política que tanto defendia a pesquisadora foi capaz de construir a dissertação A Bicicleta e as Mulheres, propondo a criação de uma metodologia qualitativa e subjetiva sobre os desafios e desejos das mulheres em São Paulo quando escolhem a bicicleta, e também sobre o que as faz deixar de escolhê-la como meio de transporte.

“Ainda há muito espaço para avançar a discussão sobre o uso da bicicleta para mulheres e deixar aparecer maneiras de diminuir as barreiras que impedem as mulheres de adotá-la como transporte, mirando medidas mais condizentes com o contexto das cidades brasileiras e latino-americanas e com a realidade das mulheres da região.”

Para embasar a metodologia, a pesquisadora fez extenso escrutínio sobre bibliografia nacional e internacional que intersecciona mulheres, urbanismo e transporte público. A revisão revelou a urgência de sua pesquisa: a maioria do material produzido leva em conta as realidades de planejamento urbano e de gênero do norte global. O sul, em especial a América Latina, exige um olhar próprio, que considere as desigualdades socioterritoriais, de raça e de classe social.  

Movimento como o Terça das Manas ajudam mulheres a se apropriar do espaço público com a bicicleta. Foto: Terça das Manas.

Marina optou em sua tese por esmiuçar as não obviedades, os não-lugares comunsda relação entre mulher e bicicleta. Ela entrelaça história da popularização da bicicleta com a da ocupação dos espaços públicos pelas mulheres, apontando que não é possível discorrer sobre a temática sem considerar emoções e subjetividades, e que essas deveriam também ser olhadas no planejamento da malha urbana. 

O resultado de sua metodologia é um retrato da mulher ciclista em São Paulo: uma mulher que encara os desafios do relevo da cidade; que deseja espaços cicloviários e acredita que com a criação de políticas públicas é possível que mais pessoas adotem a bicicleta; que sofre com assédios e violência no trânsito, mudando trajetos para continuar a pedalar, mas, acima de tudo, uma mulher cujo discurso “tem uma positividade. A maior parte delas precisou de um incentivo ou lampejo para começar a andar, mas uma vez iniciadas no uso cotidiano da bicicleta, parece que é uma prática rapidamente incorporada à rotina e que ressignifica e torna mais prazerosa a relação das pessoas com a cidade.”

A defesa da bicicleta como ferramenta de ocupação de espaço público

O corpo não é ausente nos discursos da pesquisa A Bicicleta e as Mulheres. Como cicloativista que pedalou em cidades brasileiras e do mundo, Marina defendia a bicicleta como solução possível para um já obviamente esgotado planejamento urbano voltado para veículos motorizados. O ato de andar de bicicleta ressignifica a relação da cidade e consigo própria, especialmente para mulheres, cujo espaço público sempre foi negado e têm o corpo preso a tentativas de submissão.

Coletivo Señoritas Courier luta pelo direito à cidade para mulheres ciclistas e para as que trabalham com entregas. A foto é manifestação Breque dos Apps, onde entregadores protestavam por direitos. Foto: Ricardo Neres Machado.

“Este trabalho considera uma das principais características da mobilidade por bicicleta: ser um veículo movido a propulsão humana. A simplicidade da estrutura metálica da bicicleta; a exposição dos corpos quando pedalando, apenas sentados no selim; a baixa velocidade média que atinge nos percursos da cidade e que possibilita contato fácil com o entorno, com as pessoas nas calçadas com as fachadas do comércio… (…) A bicicleta é capaz de estabelecer uma lógica diferente daquela de funcionamento das cidades modernas rodoviaristas, por imprimir um ritmo e velocidade mais democráticos”. 

Marina olhou com agudeza a bicicleta como ferramenta de ocupação do espaço público, questionando até a própria ideia de que ela não serviria para as viagens das mulheres, classificadas pela bibliografia revisada como dividida em diversas paradas. “Entretanto, a presente pesquisa discorda da leitura de que a bicicleta seria menos apropriada para a realização de viagens com múltiplos destinos ou em cadeira, já que acredita que é justamente nessa praticidade da liberdade de movimento — sobretudo se comparado com o transporte público, que a bicicleta tem um potencial positivo enorme”. 

Por fim, o maior legado da pesquisa, que pode referenciar trabalhos futuros e a criação de políticas públicas é que a cidade como está feita não basta mais. Não basta para mulheres ciclistas, para mulheres negras e indígenas, para as crianças e para os idosos. 

“O presente trabalho defende que a situação que as mulheres enfrentam cotidianamente em cidades que não foram planejadas para dar conta de suas rotinas e suas necessidades é análoga à situação daquelas pessoas que escolhem se deslocar de bicicleta enfrentam cotidiana ao circular por uma cidade feita para carros. Nenhum dos dois grupos teve suas necessidades verdadeiramente consideradas no planejamento e construção das cidades, simplesmente porque não são o público-alvo de quem está por trás dos interesses hegemônicos que controlam a cidade”.

A cidade pode ser redesenhada e recriada para e por elas, considerando o fator humano. É preciso que no futuro, as cidades sejam lugares para que ciclistas como Marina continuem a pedalar.  

Nossa melhor forma de homenagear a Marina é reafirmar nosso compromisso com a luta por cidades que protejam a vida. Foto: LabCidade.

Iniciativas para seguir

Terça das Manas: Grupo exclusivo para mulheres se reúne toda terça-feira para pedalar juntas em Belo Horizonte (MG) e desmistificar a ideia de que a cidade, por seu relevo ondulado, é impossível de pedalar.

Arquitetas Negras: Para repensar a cidade, o trabalho de Marina aborda a necessidade planejadoras urbanas diversas. A página Arquitetas Negras reúne trabalhos e pesquisas de arquitetas, urbanistas e planejadoras negras em todo mundo.

Coletivo Señoritas Courier: Coletivo de mulheres e LGBTQI+ que incentiva a prática ciclista e forma uma rede de apoio e suporte para mulheres que trabalham fazendo entregas de bicicleta.

Cidades Seguras para as mulheres: Iniciativa formada por múltiplas organizações que sistematiza ações para tornar cidades mais seguras para mulheres, pensando em perspectivas de educação, moradia, transporte e saúde.

Projeto Mulheres Caminhantes: Criado em conjunto por três organizações (Rede MÁS, o SampaPé! e o Fórum Regional das Mulheres da Zona Norte), o projeto cria iniciativas e práticas para entender como tornar o deslocamento das mulheres na cidade mais seguro.

100 Gurias 100Medo: Evento corre o Brasil inteiro para juntar mulheres em prol do cicloativismo e do direito à cidade. A próxima edição será em Recife (PE).

coletivo apē – estudos em mobilidade – Grupo de estudos que interseccionam mobilidade, território e educação, produzindo intervenções e produção de dados sobre a temática. Marina fez parte do grupo.

Ciclocidade: Associação de ciclistas da Cidade de São Paulo, onde Marina foi intensa pesquisadora e ativista. O coletivo luta por melhores condições para ciclistas urbanos fomentando ações e pesquisa.

Labcidade: Coordenado por Paula Santoro e Raquel Rolnik, o laboratório de pesquisa e extensão da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo olha para o direito à cidade de uma perspectiva multidisciplinar, pautando discussões e projetos importantes sobre habitação e transporte.

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Artigo de  publicado originalmente no Portal Aprendiz.

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