“Cidade linda, sem catadores, é lixo“

As duas ficam embaixo do viaduto que liga o minhocão à Radial Leste. A área é usada para recolhimento de recicláveis desde 2006 e as cooperativas funcionam ali desde 2009. Elas reúnem 120 catadores. Segundo o Movimento Nacional dos Catadores (MNCR), o local foi cedido na prefeitura de Gilberto Kassab (2006-2012).

O governo João Doria (PSDB) alega falta de documentação para uso do espaço. Os catadores não saíram do local e pediram reanálise do caso. Conseguiram uma reunião com representantes da subprefeitura da Sé, que foi realizada na terça (4) e para a qual foram acompanhados pela Defensoria Pública federal. Nada foi concluído. Foi marcada uma nova data para seguir com a conversa para o dia 11.

A lei brasileira de gestão de resíduos, PNRS, de 2010, reconhece a importância do trabalho dos catadores como agentes de defesa do meio ambiente e orienta a inclusão desses trabalhadores nos processos de reciclagem atuais e nos que sejam desenvolvidos, através de fomentos às cooperativas e auxílio na formalização do trabalho. Há cerca de 25 mil catadores em São Paulo.

Organizações que estudam o trabalho estimam que existam em torno de 64 milhões de catadores pelo mundo. Em algumas cidades brasileiras, eles são remunerados pelas prefeituras. Nas centrais mecanizadas de São Paulo, eles foram regularizados. Empresas privadas que participam de iniciativas da logística reversa de seus produtos já entendem essa importância e apoiam políticas inclusivas.

O vereador Eduardo Suplicy (PT) e o ex-secretário de Serviços da gestão Fernando Haddad, Simão Pedro, enviaram carta se oferecendo para intermediar a negociação dos catadores das cooperativas do Glicério ao prefeito, João Doria, e ao vice-prefeito, Bruno Covas, que é o responsável pelas subprefeituras.

Na carta, Suplicy e Simão Pedro afirmam que mesmo as cooperativas que têm convênios com o ente responsável pela limpeza pública, a Amlurb, não têm licença.

Na quarta (5), cerca de 100 representantes de várias entidades de defesa da reciclagem e de apoio aos catadores se reuniram na CooperGlicério para debater a ordem de despejo e se mobilizar contra futuras ações semelhantes em outras cooperativas.

Edvan do Conselho, presidente da Nova Glicério, está na catação desde 1993. Ele disse que a cooperativa nunca teve antes ordem de despejo. Cleiton Emboava, também da Nova Glicério, acredita em um acordo nos próximos dias com a prefeitura para a continuidade da reciclagem nas duas cooperativas do centro.

Entre os participantes do ato estava também o artista Mundano, criador do Pimp My Carroça. Para ele, a prefeitura deveria, em vez de expulsar, investir para melhorar os espaços, colocando sinalização e equipamentos de segurança no pátio usado para a separação dos materiais.

“O catador não tem nenhum apoio. Ele faz três serviços públicos –limpeza, coleta seletiva e logística reversa– e não recebe nada do poder público. A reciclagem informal, como a deles, é maior que a formal em todas as grandes cidades do mundo”, diz.

O Pimp My Carroça acaba de receber um prêmio de arte pública em Hong Kong (IAPA). O Pimp atua desde 2012 para tirar os catadores de recicláveis da invisibilidade, valorizando seu trabalho e dando assistência mecânica, de funilaria, pintura com grafitis e segurança para carroças de catação, e equipamentos de proteção – como luvas e fitas sinalizadoras – para os catadores.

Mas a tentativa de lacrar as cooperativas não foi a única ameaça ao sistema da reciclagem em São Paulo. A outra foi nos últimos dias de março, quando o governo municipal lançou seu plano para 2017-2020, em que a reciclagem passa praticamente ao largo, a compostagem sumiu, as metas não representam avanço consistente e há erro conceitual importante, como apontam especialistas da área.

Na quinta (6), pesquisadores e ativistas ligados aos grupos Cidade dos Sonhos, Minha Sampa e Rede Nossa São Paulo lançaram um documento de análise do programa da gestão Doria.

A análise considera que a única meta apresentada em resíduos sólidos no programa é uma “contribuição insignificante”: prevê reduzir em 100 mil toneladas/ano os rejeitos de resíduos enviados a aterros municipais no ano de 2020, em relação à média 2013-2016.

“O alcance da meta teria um impacto de apenas 1,8% no total de lixo da cidade (na comparação com o ano de 2016), e isso apenas em 2020”, diz a análise.

Ainda de acordo com a análise, o programa traz um erro conceitual grave, já que o certo não é deixar de enviar rejeitos para aterros. Rejeito é o material não passível de reciclagem, compostagem ou biodigestão. Na verdade, segundo a lei brasileira, somente os rejeitos deveriam ir para os aterros. Os materiais passíveis de reciclagem ou reaproveitamento deveriam ser separados antes e destinados a esses fins. A atuação dos catadores nessa cadeia é fundamental.

A análise também aponta que não há referência ao Plano de Gestão Integrada de Resíduos Sólidos – Decreto Municipal no 54.991/2014 (PGIRS), o que indica falta de comprometimento com o longo prazo e de sintonia com o que vêm pensando os movimentos de cidades inteligentes e resilientes. “Nota-se total ausência de linhas de ação e projetos que caminhem em direção ao cumprimento do PGIRS e adotadas mundialmente: promover a redução de produção de resíduos, dos desperdício e perda de alimentos, de reaproveitamento dos resíduos secos para reciclagem e dos resíduos orgânicos para a compostagem e soluções em biodigestão.”

O grupo de análise propõe que sejam ampliados os índices de separação (para três frações: recicláveis, orgânicos compostáveis e rejeitos), de coleta e de destinação correta. “A meta deveria ser estabelecida com a premissa de cumprir diretrizes do PGIRS e com objetivos específicos relativos à redução de envio de resíduos secos e resíduos orgânicos para os aterros municipais por meio da reciclagem e da compostagem, respectivamente”, diz o texto.

A análise também mostra que a compostagem, que estava prevista no programa do candidato João Doria ficou fora das metas.

Funcionários em Usina de Compostagem da Lapa, Zona Oeste de SP. Foto: Cesar Ogata / SECOM

O grupo sugere incluir meta que busque promover a inclusão de catadores autônomos e cooperados no sistema de gestão de resíduos secos da cidade, assegurando condições dignas e eficientes de trabalho e remuneração adequada para a categoria. Segundo análise do grupo, há 20 mil catadores informais na cidade.

Na área de resíduos sólidos, participaram os grupos Giral, Kombosa Seletiva, MNCR, Objetivos da Compostagem, Observatório da PNRS, Pimp My Carroça e Rede Paulistana.

Guilherme Turri, do Objetivos da Compostagem, aponta que, diferentemente do plano de governo, em que a coligação “Acelera SP” se comprometia a implementar pátios de compostagem e outras ações de fomento a pulverização e diversificação do setor de resíduos, “no plano de metas a gestão demonstra que vai seguir operando com o duopólio da coleta domiciliar (Loga e Ecourbis) e com o duopólio da varrição e podas (Soma e Inova), não abrindo a possibilidade de concorrência e inovação para novos entrantes”.

“São alguns dos maiores contratos da cidade, que amarram bilhões do orçamento municipal e prendem a Prefeitura aos mesmos fornecedores por 20 anos, impedindo o uso de novas tecnologias mais baratas e de menor impacto”.

Ele critica a meta de redução de “rejeitos”: “A própria recessão econômica, ao afetar o consumo e a produção de resíduos, pode cumprir esta meta. Em outras palavras, a gestão está dizendo: vamos governar por 1.460 dias, mas só vamos cuidar adequadamente de 10 dias da produção de lixo”.

“Se tivéssemos um pátio de compostagem como o da Lapa em cada uma das 32 prefeituras compostando resíduos de feiras e podas, com cento e poucos mil reais de implementação já chegaríamos em cerca de 160 mil toneladas ano desviadas dos aterros”, diz.

***

Nota da Prefeitura de São Paulo, enviada pela assessoria de imprensa por e-mail na tarde da sexta-feira (7) para a colunista Mara Gama:

“Não haverá nem retirada nem fechamento imediato das cooperativas instaladas sob o viaduto. No entanto, pelo fato de o local não ter as condições adequadas de segurança para abrigá-las, a Prefeitura Regional da Sé e os cooperados estão tentando encontrar, conjuntamente, novos locais para que a Cooper Glicério e Nova Glicério sejam acomodadas, sem prejuízo aos trabalhadores que delas vivem.

Os problemas de segurança no viaduto foram constatados no início de março em vistorias da Prefeitura Regional – dentre eles, riscos de incêndio. Também não foram encontrados documentos que atestassem a cessão da área por gestões anteriores.

Na última terça-feira (4), representantes da Prefeitura Regional Sé e da secretaria de Direitos Humanos participaram de uma reunião com membros das duas cooperativas para debater soluções com relação ao uso do espaço. Ficou assegurado que não haverá fechamento enquanto forem discutidas as saídas para este assunto. Na próxima reunião, cada cooperativa deverá apresentar propostas de locais para que a Prefeitura Regional analise a viabilidade. Caso seja necessária a mudança das cooperativas para outra região da cidade, a PR Sé dará apoio no transporte.”

***
Mara Gama é jornalista com especialização em design, roteirista e consultora de qualidade de texto. Artigo publicado originalmente em seu blog na Folha de S.Paulo.

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