Uma das 40 crianças criadas pela fundadora da agremiação, ela tem uma trajetória que se confunde com a do samba em São Paulo. “Pela minha história de vida, eu tinha que odiar o samba: meu pai morreu por causa de uma baqueta de ouro num concurso. Mas acabei ficando, sendo criada nesse mundo”, conta.
Deolinda Madre, a Madrinha Eunice, foi quem passou a tomar conta de Rose após a morte de seus pais. Mulher negra, dona de quatro bancas de frutas na cidade, ela foi responsável pela fundação da mais antiga escola de samba em atividade em São Paulo. Era 1937 e a cidade tinha cordões, mas não escolas. “O que diferenciava era o estandarte”, explica Rose.
Nascida no interior de São Paulo, filha de africanos escravizados, Madrinha Eunice é mulher pioneira e figura notória no samba, apesar de não tão conhecida fora dele. Fundou a Lavapés após uma viagem ao Rio de Janeiro com o marido, onde se encantou com o desfile da Deixa Falar (hoje Estácio de Sá). Voltou à capital paulista decidida a fazer algo parecido.
Passou quase seis décadas comandando a agremiação que venceu sete Carnavais entre 1950 e 1964, desfilando como baiana e cultivando o samba entre a família, levando os netos, como os chamava, para a festa do Bom Jesus de Pirapora, base do samba paulista. “Ela falava muito da cultura dela, do negro no interior. Falava dos bailes, que o melhor baile de negro era em Piracicaba, o 13 de Maio. E falava da religião: ela envolvia muito o samba com essa mistura, dizia ‘eu sou católica apostólica, mas sou da quimbanda’”, diz Rose.
De 1990 em diante, Madrinha Eunice avisava a todos que estava para morrer. “Em 1995 ela disse: ‘Deste ano não passo’.” A morte veio mesmo naquele ano depois de complicações de diabetes que a fizeram ter as pernas amputadas. Um dia, desanimada por não poder andar, cantou sambas o dia inteiro, a noite toda. “Quando parou, dormiu e não acordou mais”, lembra-se a neta. O falecimento gerou discordância na família. “Na hora de enterrá-la, falaram: ‘Vamos enterrar com o pavilhão’. E eu disse: ‘Não! Vai enterrar a escola?’.”
Desde criança, Rose era apontada por Eunice como sua sucessora, e assim se tornou. A personalidade forte da avó foi a chave para seguir com a escola, com todas as dificuldades que a agremiação enfrentou ao longo dos anos. “Ela era demais, aonde chegava era mão de ferro. E quando ela falava ‘se vocês não me derem o que eu quero, vou contar o que sei’, ahhh… Aí era rápido!”, gargalha Rose. “Ela foi uma figura marcante, como mulher, trabalhadora e guerreira. Dona do seu próprio eu, ninguém mandava nela. E sendo negra, que na época era complicadíssimo e até hoje é, né?”
Rose hoje é uma das presidentes que atuam no Carnaval paulista, pelo Grupo 3 da Uesp (União das Escolas de Samba de São Paulo). A Morro da Casa Verde, do Grupo 1, é representada pela figura lendária de Dona Guga. Já no Grupo Especial, três escolas têm mulheres na liderança: Mocidade Alegre, com Solange Cruz; Rosas de Ouro, com Angelina Basílio; e Tom Maior, com Luciana Silva. No Rio, Regina Celi comanda o Salgueiro.
Para manter a agremiação, Rose segue a tradição ensinada pela avó: faz rodas de samba com comida. “Tem a ver com as tias baianas, com tudo o que vivi. As mulheres comandando na cozinha, e comandando tudo depois. Em Pirapora a mesma coisa: a mulher punha a mão no bumbo, e só aí que o samba ia embora.”
Das raízes dessa história
A fala de Rose evidencia a importância da figura feminina como fundamento das escolas, seja em São Paulo, seja no Rio, embora em muitos postos a presença de mulheres siga rara. A pesquisadora carioca Rachel Valença, 72 anos, que foi componente, diretora da ala infantil, ritmista e – após décadas de quadra – presidente da Império Serrano, explica um pouco essa questão por meio de sua própria experiência enquanto mulher branca e de classe média, que conheceu a agremiação da zona norte do Rio na década de 1970.
“Quando cheguei, estranhei muito como se dava a participação das mulheres. Em toda a cultura afrodescendente, a mulher tem uma importância grande porque se trata de uma cultura matriarcal. Então, a pessoa mais influente na Império era uma mulher, a dona Eulália. Ela nunca teve cargo, mas até morrer dava palpite na bateria, sentava com carnavalesco. Cheguei de fora, com outra cultura, e logo me convidaram para o departamento feminino, que organizava as festas, fazia os salgadinhos. Achei aquilo um absurdo. Só depois fui perceber que isso era uma coisa importantíssima, porque a preparação da comida é um ritual, a pessoa que alimenta na cultura negra tem o poder. Aprendi muito e acho que em todas as escolas de samba as mulheres têm uma importância enorme”, afirma Rachel, autora, com Suetônio Valença, do livro Serra, Serrinha, Serrano: O Império do Samba.
“As escolas jamais poderiam existir se não fosse a mão feminina orientando. É importante que as pessoas saibam que as tias baianas são as matriarcas, muitas ajudaram a fundar as escolas”, ressalta Leci Brandão, 72 anos, cantora e compositora pioneira no Carnaval carioca.
“A presença da mulher nesses espaços, por conta da posição da mídia, fica muito focada na corporalidade das mulheres negras, das passistas e rainhas de bateria, e não se contextualiza a escola de samba como um território de resistência e permanência política, e o papel das mulheres tanto na preservação dessa memória como ocupando diversos lugares”, diz a pesquisadora Kelly Adriano de Oliveira. Doutora em Ciências Sociais pela Unicamp, Kelly estudou as escolas paulistas e questões de gênero, raça e religiosidade.
Ela explica que o contexto pós-abolição é a chave para compreender a importância feminina no samba. “As mulheres continuaram o trabalho doméstico, enquanto os homens que trabalhavam nas fazendas ficaram sem função. Do dia para a noite, todo mundo ficou livre, mas não foi incorporado como força de trabalho. Dez, 15 anos depois, foi criada uma lei chamada Lei da Vadiagem. Se os homens ficassem nas ruas sem fazer nada eram presos. Quer dizer, eram presos porque não conseguiam colocação de trabalho. E as mulheres viravam chefes de família, elas que mantinham as tradições. Nesse movimento todo, entra o samba.”
Quando o samba começa a sair do ambiente doméstico, as mulheres perdem poder. “Ele vai para a rua, se tornar algo mais do espaço público, e as mulheres começam a ser afastadas. Depois, aos poucos, foram se inserindo nesse espaço externo também”, diz Kelly, ressaltando que, no Rio, essa mudança do privado para o público começou mais cedo.
Quem conduz e quem compõe
Assim como Rachel, da Império Serrano, que, além de presidente, tocou na bateria, Rose também atuou em uma área artística, entoando o samba da Lavapés por muitos anos. Mulheres intérpretes não são novidade – cantaram na avenida Leci, Dona Ivone Lara, Clara Nunes, Tia Surica e Beth Carvalho, só pra citar nomes bem conhecidos –, mas também nunca foram padrão.
Em São Paulo, a Unidos do Peruche desfilava nas ruas no fim da década de 80 com Eliana de Lima na primeira voz, e na sequência veio Bernadete dos Santos. Aos 66 anos, ela traz a lembrança de ter sido a primeira cantora a entrar no sambódromo do Anhembi, em 1991, ao conduzir a Império Lapeano pelo Grupo 3 da Uesp. Esse episódio era apenas o início da carreira da cantora na avenida. Após virar a noite na rua acompanhando os desfiles, mal tinha se deitado quando descobriu, pelo rádio, que poderia cantar novamente. Só que dessa vez pela Peruche, no Grupo Especial.
“A Eliana de Lima (na época a intérprete oficial da escola, onde Bernadete vinha atuando como cantora de apoio) deu à luz na noite anterior ao desfile. Eu achei que eles não iam arriscar me dar a escola na mão, achei que iam trazer o Jamelão, que já tinha cantado aqui. Mas cheguei na escola e me falaram ‘é você quem vai levar a Peruche na avenida’”, conta.
Bernadete também nasceu no samba. “Meu pai era maloqueiro”, ri ela, enquanto aguarda para entrar em mais um ensaio de domingo na quadra do bairro do Limão. “Ele tocava violão de sete cordas, ia pro samba na quinta e voltava na segunda. Tinha um grupo chamado Conjunto em Preto e Branco, eles se reuniam na minha casa. Todos cantavam, minha mãe cantava com eles, mas não saía de dentro de casa. E eu cantava logo quando criança, e todo mundo falava ‘ela tem a voz boa’”, conta. Anos depois, foi essa voz potente que convenceu a diretoria da Peruche a deixá-la conduzir a agremiação no Anhembi.
Ainda no carro de som da escola, mas hoje não mais como primeira cantora, ela acredita que não há mulheres nesse posto por “machismo mesmo”. “Para eles, nenhuma mulher canta mais. No meu tempo vínhamos sozinhas, hoje são dez de apoio. Eu bato na cara deles todo dia, porque quando é para fazer evento sou eu que vou”, diz ela.
Além de cantar, Bernadete é presidente da ala dos compositores da escola. “Eu tenho muitas compositoras, trago elas pra cá, presto atenção nisso. Acho que temos que agregar.”
Paulo Sérgio Ferreira, diretor da Liga SP, que reúne as escolas do Grupo Especial e de Acesso, avalia em menos de 5% a porcentagem de mulheres na ala de compositores. No Rio, nos dois últimos Carnavais nenhum samba do Grupo Especial foi assinado por mulher. Embora no mesmo Rio, no fim da década de 1950 a Unidos da Ponte tivesse Carmelita Brasil como presidente e compositora. Já em 1965, Dona Ivone Lara entrava para a ala de compositores da Império Serrano, e em 47 ela havia composto, em conjunto, um samba para a Prazer da Serrinha.
Outra referência feminina, Leci Brandão chegou na ala de compositores de uma escola em 1971. Neta, filha e afilhada de mulheres mangueirenses, ela compunha havia sete anos quando foi apresentada pelo compositor Zé Branco na agremiação do Rio. “O presidente na época disse o seguinte: ‘Mas por que você está trazendo ela aqui?’. E ele: ‘Porque eu acho que seria interessante se vocês dessem essa oportunidade, ela já compõe’. O presidente então pediu que eu escrevesse uma carta explicando os motivos pelos quais eu queria entrar na ala, e eu falei que seria muito importante participar daquela academia – que eu considero uma universidade mesmo do samba. E ali foi decidido que eu teria que fazer um estágio de um ano e, se passasse, receberia a carteira da ala de compositores. E isso aconteceu. Em 1972 eu desfilei na Mangueira pela primeira vez”, conta Leci.
Driblando no batuque
Quando, em 2008, a ritmista Verônica Borges pediu para tocar caixa na bateria da Nenê de Vila Matilde, escola da zona leste paulistana onde tocava agogô, ouviu “não”. “‘Você sabe, mulher não pode’ foi a resposta”, conta ela, que já tocava o instrumento havia alguns anos em blocos, “‘mas se quiser voltar pro agogô será sempre bem-vinda’”. Apesar da maior exigência de uma bateria do Grupo Especial em relação a de um bloco, ela sentiu que havia espaços predeterminados. Apaixonada pelo batuque, queria estar tocando onde fosse, e seguiu no agogô, instrumento cuja ala chegou a coordenar por um ano na Acadêmicos do Tucuruvi.
Socióloga e antropóloga, Verônica, 32 anos, chegou ao samba via bateria da Unicamp, onde estudou. Aprendeu ali a tocar todos os instrumentos. “Só surdo que tive que esperar um pouquinho.” Em 2011, decidiu tentar a caixa de novo na Nenê. Para isso, arriscou uma estratégia ousada antes de falar com o mestre: na parada da bateria, ao som do coro da escola, pegava o instrumento de um amigo e solava. Diretores vinham do seu lado, percebiam que ela estava tocando certo e ficavam surpresos. Pediu novamente e ouviu um “sim”. Já no primeiro ensaio foi para a peneira (seleção de ritmistas) e passou.
“Hoje sinto que sou muito respeitada pelo ritmo que faço lá dentro, mas ainda vejo caras de espanto e admiração. Esses dias lembrei que, logo que comecei, tinha a lista com os nomes dos ritmistas e eu vi que tinha sido apelidada de ‘mina da caixa’”, conta ela, primeira mulher a tocar um instrumento pesado na escola. Assim como Bernadete, Verônica participa do documentário Bambas (2017) sobre mulheres e samba, de Anná Furtado, uma das iniciativas recentes que aborda o tema, presente hoje em blocos (como o Ilú Obá de Min), grupos (como o Samba Delas, do qual Verônica faz parte, ou o Mbeji) e rodas de conversa.
Apesar do frescor da pauta, ainda mais quando se pensa em bateria, registros apontam uma ritmista no couro da Portela (Dagmar do Surdo) lá atrás, em 1954, outra no tamborim da Vai-Vai em idos dos anos 1970 (Terezinha Benedita de Moraes, como conta o blog Batucada Feminina). A Mangueira foi a última escola a ter mulheres em seus naipes, em 2007.
“Temos que pensar que quem está indo além e quem chegou primeiro teve de derrubar mais portas”, diz Verônica. “Acho que consegui ficar tranquila na Nenê com o primeiro ‘não’ porque venho de uma bateria universitária, em que pude me fortalecer como ritmista.”
Foi a ideia de um ambiente acolhedor que a fez mudar de opinião em relação a baterias femininas, que se reúnem em ensaios. Como projeto do curso de Antropologia, já imersa nas batucadas, ela resolveu estudar a bateria de mulheres da Águia de Ouro. “Antes eu não curtia muito essa ideia, hoje acho que é fundamental ter um espaço para que as mulheres possam aprender, se desenvolver e fortalecer, contanto que esse espaço modifique a bateria geral. Porque o que eu vejo muitas vezes é na bateria feminina as mulheres tocando tudo, e na bateria geral tocando agogô, chocalho, mas não tocando surdo nem caixa”, pondera ela, que já ouviu como justificativa para a ausência feminina em certos naipes a força física, ao que rebate: “Resistência se adquire”.
Diretora na concorrida bateria da Vai-Vai, junto a Cintia Adelaide (no agogô) — as primeiras mulheres a ocupar esse cargo na escola –, Tamara Ferreira rege ali ala de chocalhos, mas toca quase tudo. Quis inicialmente tocar tamborim, hoje em dia quer aprender timbau. Aos 28 anos, a ritmista também acredita na importância das referências femininas. “Ao ver outras mulheres tocando a gente tem em quem se espelhar. E hoje a gente tem que tirar uma onda. A gente é mulher, está tocando e tem que tirar onda”, ri ela, que está sempre cheia de energia caminhando entre o grupo que ocupa as ruas da Bela Vista nas noites de ensaio.
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Por Adriana Terra e Adeline Haverland na Revista Brasileiros.