Na avenida Brasil, foram instalados dezenas de pequenos mastros, numa decoração seqüencial.
No Largo da Batata está sendo cavado um buraco, que parece estar sendo destinado à instalação de novos mastros. Perguntei à Prefeitura sobre o assunto e recebi a confirmação de que o mastro a ser instalado por lá deverá ser “o maior da cidade”, com 33 metros, ou seja a altura de um prédio de 11 andares.
Para alguns, esse assunto se encerra em si mesmo. Instalam-se as bandeiras e temos uma nova paisagem urbana na cidade. Fato consumado.
Aprofundando a questão
Outros, porém, talvez considerem que o assunto mereça um pouquinho mais de discussão. Particularmente, acho que não custa nada a gente discutir um pouco antes de usar as ruas e praças da cidade numa cruzada pelo resgate do patriotismo. Acredito que haja pelo menos três aspectos que podem ser considerados nesse projeto.
1. As bandeiras carregam carga simbólica e sua instalação sem critério pode diluir seu significado
O primeiro é o aspecto simbólico. A bandeira brasileira é um símbolo do país, das relações entre as pessoas, das instituições, do território e das riquezas (o amarelo do ouro, o verde das florestas, etc). No dicionário de símbolos, a bandeira é o símbolo da proteção que os cidadãos recebem de seus governantes, desde os tempos medievais até hoje. A bandeira também simboliza vitória ou auto-afirmação e é por isso que normalmente fica num mastro um pouco acima das cabeças das pessoas.
Faz sentido, portanto, entender a bandeira como símbolo de algo maior, mas de significado mutável. Na ONU, nossa bandeira representa nossos desejos e aspirações a nível mundial. Nos Jogos Olímpicos, representa a garra dos atletas que se dedicaram por anos para aqueles minutos de competição. Na frente dos órgãos da república, representa a força das instituições.
A bandeira é, portanto, um símbolo a ser celebrado nas ocasiões especiais, em atos para refletirmos sobre os valores sob os quais queremos viver. Ela merece respeito e isso exige alguma seletividade. Onde vai ser hasteada, em que ocasiões e em que circunstâncias.
Nesse sentido, causa um pouco de estranheza a idéia de ver dezenas de bandeiras num canteiro de avenida, como as que foram instaladas na Av. Brasil. A iniciativa é de um associação, a EAB – Associação Eu Amo o Brasil, uma iniciativa de um escritório de advocacia, cujo presidente afirma que o cidadão tem que ter orgulho de sua bandeira.
Será que esses lugares são adequados para a celebração das nossas instituições? Faz mais sentido simbólico se as bandeiras estiverem postadas próximas às próprias instituições – Prefeitura, Câmara, etc, e também nos lugares da cidade que foram importantes na história republicana.
2. A escala das intervenções transforma a cidade, não necessariamente para melhor
A segunda consideração diz respeito à escala
Um mastro de 33 metros não é um objeto trivial, como pode ser visto no croquis abaixo, uma simulação da paisagem com a bandeira no largo da Batata. Trata-se de uma estrutura altíssima, que intencionalmente ou não vai estar acima das construções do entorno, sobrepujando inclusive a torre da Igreja que está lá há décadas, e que sobrevivera às longas reformas como um singelo símbolo de uma praça acolhedora.
Nas cidades medievais, a igreja sobressaía, acima de todas as outras construções. Na cidade industrial, despontou a torre da fábrica. Depois os prédios, que hoje se elevam a centenas de metros. Cada um desses momentos históricos tem seu simbolismo.
A idéia de construir o mastro mais alto da cidade parece uma competição sem sentido e até sem respeito à hierarquia.
Afinal, já temos uma Praça da Bandeira, que tem um mastro enorme e que poderia ser até mais bem resolvido se não se tratasse de um terminal de ônibus, que não dignifica nenhuma bandeira.
E temos também a Praça da República, lugar mais que adequado para a instalação de um símbolo que representa os valores da República.
No largo da Batata, um lugar que vem sendo reformado continuamente há anos com resultados pífios por sucessivas gestões municipais, a instalação da estrutura gigante merece uma consideração. Em princípio, mastros até combinariam com o grande espaço aberto. Porém, sua instalação sem qualquer projeto que indique ter sido considerada a sua inserção na praça, sem comunicação ou mesmo sem consulta ao Grupo Gestor da Operação Faria Lima, que deveria avalizar esse tipo de iniciativa, parece ir na contramão do simbolismo pretendido.
3. Será que nós precisamos de uma “onda cívica”, focada na instalação de bandeiras?
A última consideração tem a ver com a motivação por trás da idéia da “onda cívica”.
O civismo expressa uma relação de devoção entre os cidadãos e a pátria. É um pouco diferente da idéia de cidadania, que pressupõe uma condição de participação nas decisões e na vida pública. Se a intenção da prefeitura é resgatar o orgulho pelas nossas instituições, talvez fosse bom começar pelas coisas da cidade.
O orgulho de fazer parte da história de São Paulo inevitavelmente aumentará a cada ação que for tomada para tornar a cidade um lugar mais justo, mais democrático e mais republicano.
É de se imaginar, portanto, que, como parte do pacote cívico, também poderiam ser estimuladas as participações cidadãs no cotidiano e na escala local. Nas pequenas ações do dia a dia, na relação das pessoas com seus lugares, na relação das pessoas entre si e, claro, na relação das pessoas com as instituições, como a própria prefeitura. O que é a cidadania numa cidade como São Paulo? Como praticar isso no dia a dia? Quais são os valores que nós queremos ver perpetuados? Qual é a memória da cidade que queremos preservar?
Em cada um desses temas, instada pela própria “onda cidadã”, a prefeitura poderia e deveria ter uma atuação decisiva para estimular a participação nas decisões locais, aumentando a presença das pessoas da cidade naquilo que diz respeito à sua própria vida, desde a licitação dos ônibus até a educação, desde a saúde até a reforma dos espaços públicos e as próprias praças que talvez venham a receber as bandeiras.
O orgulho cívico virá, como conseqüência natural, não pela simples onipresença dos símbolos da pátria e do município, mas pela interiorização do seu significado e pela prática cívica cotidiana do voto, do cuidado com a democracia e da preocupação com os problemas locais.
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Mauro Calliari é administrador de empresas, mestre em urbanismo e consultor organizacional. Artigo publicado originalmente no seu blog Caminhadas Urbanas.