Sabotage: uma tradição negra na canção popular brasileira

Por José Adryan Galindo.

Apesar do curto tempo sob os holofotes, Sabotage se destacou o suficiente para ser influente na cultura hip-hop até hoje. O  “Maestro do Canão”, como era chamado, lançou no ano de 2000 seu único álbum de estúdio, intitulado O rap é compromisso. Sucesso em todo o País, o álbum é considerado um clássico do rap nacional.

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Foto: Divulgação/13 Produções.

Mauro Mateus dos Santos, mais conhecido como Sabotage, foi um rapper da zona sul de São Paulo que ganhou destaque no começo dos anos 2000. Considerado um dos maiores representantes do rap nacional, Sabotage foi assassinado com quatro tiros no dia 24 de janeiro de 2003.

Como homem negro e morador da periferia de uma metrópole como São Paulo, Sabotage retratava em suas músicas a vivência de boa parte da população brasileira, e é sobre isso que se propõs a estudar Thiago Carvalho na sua dissertação de mestrado Sabotage: Lírica negra e periférica, realizada no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP. Em sua pesquisa, Carvalho buscou entender o que fez as composições de Sabotage serem tão influentes, apesar do pequeno período de exposição na grande mídia brasileira.

A dissertação é a única pesquisa do banco de teses e dissertações da USP que estuda o artista. Ela conclui que não apenas as músicas de Sabotage, mas o rap nacional no geral são uma expressão afrodiaspórica brasileira.

“O Sabotage tem um um peso social e histórico no rap e na canção brasileira, de um modo geral, gigantesco. Você vai na ‘quebrada’, seja ela qual for, tem uma parede de grafite com o rosto do Sabotage, uma pichação escrita ‘O rap é compromisso’, entre outros”, afirma o pesquisador em entrevista ao Jornal da USP.

Grafite de Sabotage na Rua Padre Cursino, Jardim da Saúde, SP.

Carvalho inicia sua dissertação mostrando o contexto social periférico de São Paulo quando Sabotage se lançou no rap. Ao apresentar estatísticas sobre a violência, nota-se que o artista era parte da parcela que mais sofria em São Paulo: homens, pretos, pobres e periféricos. Sabotage, além de ser todos estes, teria se envolvido com o tráfico quando mais novo. De acordo com o pesquisador, “era perigoso ser Sabotage”, assim como continua perigoso ser jovem negro e pobre em São Paulo. De acordo com o Sistema Estadual de Análise de Dados de São Paulo (Fundação Seade), em 2000, ano em que Sabotage lançou seu disco, 11.289 homicídios foram registrados na região metropolitana de São Paulo. A taxa de homicídio atingiu 63,1 para a Região Metropolitana, 87,5 para negros e 51,5 para não negros.

Na dissertação, o pesquisador destaca como Sabotage expressa sua negritude na música, sempre em uma posição de exaltação e resistência. O olhar pessimista e derrotado tem pouco espaço nas canções de Mauro, que, mesmo em posição de força, destaca as dificuldades enfrentadas por ele. Porém,  não esquece de celebrar sua origem, citando figuras negras importantes da música brasileira e se colocando como parte dela. Esta forma de se relacionar com a sua identidade de sujeito negro e periférico é descrita por Carvalho como o “símbolo de um desejo consciente de vida”.

Foto: Divulgação/13 Produções.

Porque a cultura, aqui, é nossa
Mexeu com nóis, é roça
Rap é compromisso, é como o míssil que destroça
É Cosa Nostra, pra favela abrindo a porta
Só periferia que domina tal proposta
Saúde, mude, é ter poder, viver com proceder
Esqueça, esse já fez, um dia eu fiz e vai fazer
(Sabotage, 2000, A cultura)

Análise das músicas

Para compreender a obra de Sabotage, Carvalho analisou três das músicas mais populares do rapper: O rap é compromisso, que dá nome ao seu álbum, Mun-rá e Cabeça de nego.

Carvalho comenta que o trunfo desta interação é da universidade O Sabotage já tem o lugar dele, já é gigantesco. É a academia que ganha ao estudar Sabotage e não o contrário. É importante estudar ele para tentar decifrar os códigos que estão ali. A gente sabe que é bom, mas o porquê de ser bom é o interessante”, aponta o pesquisador.

A faixa O rap é compromisso é mais que apenas uma música da periferia de São Paulo, já que o título da canção se tornou uma espécie de ditado popular. Carvalho busca entender do que se trata este compromisso, que parece não abranger apenas o rap na forma literal. O pesquisador começa apresentando a dualidade presente no refrão da música entre compromisso e viagem: “O rap é compromisso, não é viagem”.

Durante a análise, Carvalho chega à conclusão de que o “compromisso” cantado por Sabotage pode ter mais de um significado, a depender do contexto. Porém, o primordial se trata do comprometimento do rap em denunciar a desigualdade e a violência sofrida pelos moradores da periferia. Não se trata de excluir moradores de bairro central, mas de entender que o rap, como parte da cultura hip-hop, nasceu com a função de dar voz à parcela mais reprimida da população.

Já a “viagem” apontada na obra se trata da visão negativa da periferia. É apontar os problemas não como forma de denúncia, mas como preconceito da sociedade em relação à comunidade. Um dos trechos da música usado por Carvalho como exemplo é quando o rapper fala sobre o imaginário e a realidade do mundo do crime:

Dizendo que os manos que foram
Ficou na memória
Por aqui, só fizeram guerra toda hora
Acontecimentos vêm, revelam
A vida do crime não é pra ninguém
Enquanto houver desvantagem
Só ilude um personagem, é uma viagem
A minha parte não vou fazer pela metade
Nunca é tarde, Sabotage, esta é a vantagem
Aí, Rapper de fato grita e diz: o Rap é compromisso
Não é viagem
(Sabotage, 2000, Rap é compromisso

Carvalho defende que estudar a obra de Sabotage ajuda a academia a compreender, por meio das letras de Mauro, o que o pesquisador chama de “verdade presencial” ou conhecimento empírico de quem vive a realidade da periferia.

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Imagem: Divulgação/13 Produções.

“Estudar Sabotage é estudar o artista, claro, mas também entender o que é a periferia paulistana. Como ela se constitui, quais são seus símbolos, suas imagens e os conteúdos que caracterizam isso tudo. O que é ser esse sujeito periférico e negro no Brasil? E o Sabote faz isso de um jeito primoroso. Ele fala da própria vida, do próprio presente, mas ele não abdica de falar da tradição e das pessoas que vieram antes dele. Esta verdade ‘presencial’ colocada por Sabotage, vivida por ele, também consegue ser coletiva, é isto que os grandes artistas como ele fazem”, comenta Thiago Carvalho.

Cinema e Imagem

Além da carreira musical, Sabotage teve uma breve trajetória no cinema, participando de dois filmes como ator e consultor. O convite surgiu após o diretor Beto Brant ver um vídeo do artista cantando junto ao grupo Rapaziada da Zona Oeste (RZO) e ficar impressionado com o rapper, que atuou no filme O invasor. Sabotage também fez parte da trilha sonora do filme, além de trabalhar como consultor sobre assuntos relacionados ao dia a dia da periferia. Posteriormente, ele foi convidado por Héctor Babenco, diretor do filme Carandiru, para fazer parte do elenco e trilha sonora do filme.

Carvalho comenta o ineditismo das aparições de Sabotage na grande mídia brasileira:  “Aonde ele chegava, cativava as pessoas. E dentro da cultura do hip-hop, especialmente, o Sabotage foi muito importante segundo o Mano Brown, segundo o Thaíde, entre outros, pelo sorriso, tá ligado? Ele não tirou a gravidade, mas ele relativizou a gravidade da postura dos rappers. Ele mostrou que poderia sim aparecer na mídia, que poderia ser um homem sorridente, que poderia, mesmo com tudo isso, levar a cultura hip-hop para outros lugares. Ele não tinha problema nenhum de estar na grande mídia. É claro que houve um certo ruído para ele. Ele se perguntava, às vezes, se estava fazendo certo ou não. Mas ele fazia”.

Sabotage como “Fuinha” no filme Carandirú de 2003, na cena com Wagner Moura. Foto: Sony Pictures Classics.

Esse ímpeto que Sabotage tinha de explorar novas perspectivas com a arte foi algo muito admirado pelos rappers da época. Apesar de pioneiro, Sabotage representava outros MCs que desejavam ocupar aqueles espaços. Em entrevista ao Jornal da USP o rapper e conhecido de Sabotage, Max B.O., comentou sobre este processo: “Para mim, especialmente, foi uma afirmação do que eu já vinha buscando, tá ligado? Eu sempre enxerguei a rima e a oralidade como uma ferramenta de comunicação. A rima como ferramenta para aproximar as pessoas. Então, ter o Sabotage, que era um cara da periferia, de um talento nato. Ele não teve uma vida dedicada à dramaturgia, e ele entrou muito bem no cinema. Eu acho que ele foi de suma importância, sabe? Ele foi extremamente fundamental para tudo que aconteceu depois”.

Max é coautor da música Cocaína, que está presente no álbum Rap é compromisso. Na ocasião, Sabotage ainda não tinha terminado de compor a letra e teve que cantar em um programa de TV. Para ajudar Sabotage, Max se dispôs a improvisar um verso depois do refrão. Sabotage gostou tanto do verso de Max que fez uma adaptação e o colocou na versão final da música.

Max B.O. foi apresentador do Manos e Minas entre 2010 e 2016, programa sobre a cultura hip-hop exibido pela TV Cultura, de São Paulo, desde 1993. Ele destaca a importância da USP estudar não apenas Sabotage, mas a cultura negra no geral. “O rap tem a trazer para muita gente coisas que eles não enxergam, que eles não convivem. Acho que essa é uma função da USP, tentar mostrar para quem não conhece o rap, para quem não conhece a quebrada, para quem não conhece o poder de transformação da cultura hip-hop. Ajudar a entender isso também como uma coisa que deve ser preservada. Assim como a música erudita é preservada por tantos anos, o hip-hop, que tem apenas meio século, precisa ser guardado e colocado nesse lugar de estudo”, destaca Max B.O.

Após o sucesso na música, Mauro nunca deixou de transitar nos bairros onde cresceu. Descrito por Carvalho como “quase o messias do rap”, Sabotage se destacava pela simplicidade. 

“O que fazia dele especial era a simplicidade. Infelizmente o status, o dinheiro e a notoriedade transformam muitas pessoas. Isso não iria acontecer com Sabotage. Você ia continuar vendo ele na arquibancada do estádio, ao invés do camarote. Ele era aquele cara que estava tocando num festival, no meio de artistas globais, mas ele era ele mesmo, cara que parava no bar no Canão para trocar uma ideia e tomar uma cerveja. Não é uma coisa de você manter a essência, é você ser a essência”, destaca Max B.O.

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Artigo publicado originalmente no Jornal da USP.

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