Brasileiro vem, português vai, e vice-versa

E com o começo das festas, as ruas, pelos próximos 30 dias, ganham trilha sonora temática e incessante. Nas pequenas caixas acústicas presas aos postes, o que toca é Zeca Pagodinho, Alcione, Martinho da Vila, turma da velha guarda. A música de fundo da cidade agora é uma grande playlist de mais de 700 horas de música brasileira (ok, talvez não seja tanto, porque as músicas devem se repetir vez ou outra. Mas nas minhas caminhadas ainda não ouvi duas vezes a mesma canção). Ou seja, apesar da festa incorporar muitos aspectos da cultura e da tradição portuguesa, de alguns hábitos e comportamentos nestes dias festivos serem diferentes dos nossos, não há como negar a influência do Brasil no carnaval de Ovar.

Mas não é só por meio do carnaval que a cidade respira ares brasileiros. Meus conterrâneos continuam a chegar, abrem cafés, barbearias, lojas de pratas, comércio de açaí, pizzaria, vão trabalhar nas fábricas, atrás dos balcões das lanchonetes, das pastelarias, dos hotéis. Enfim, o sotaque brasileiro está por toda parte.

Eu chego ao supermercado e ainda peço, por descuido, presunto, quando deveria falar fiambre. Corrijo (presunto existe, mas é o nosso presunto cru), mas quase sem necessidade. A balconista já sabe do que se trata. “A gente já entende bem o brasileiro”, explica, com uma mistura de orgulho e conformismo. Semana passada fui fazer uma “apresentação” na sala de aula do meu filho. Crianças de sete e oito anos. Minha missão era falar sobre a minha profissão, essa tão maltratada carreira de jornalista. Tinha o desafio de ser didático, objetivo e usar uma linguagem simples. Mas estava preocupado mesmo era com o meu “brasileiro”. Será que entenderiam o que eu falava? Saber se o sotaque e as palavras soariam bem foi a minha primeira pergunta e forma de interação com eles. Resposta praticamente ensaiada: “entendemos tudo porque temos três professores aqui”, riram. Além do meu filho, outros dois brasileiros – um menino e uma menina bem espertos – formam a ala brasileira de uma turma com 20 crianças ao todo.

Depois do Brasil, as maiores comunidades que vivem em Portugal são as do Cabo Verde, Ucrânia, Romênia, China, Reino Unido, Angola, França, Guiné-Bissau e Itália, nesta ordem. Foto: Francisco Seco / AP Photo.

Então está tudo bem? Música brasileira na rua, carnaval, profissionais do Brasil abrindo seus negócios ou se empregando no mercado português, sotaques e expressões de lá e de cá convivendo pacificamente, acolhimento, simpatia. No geral é assim mesmo. Mas ao mesmo tempo que vejo experiências muito positivas e uma turma grande que consegue se adaptar bem ao velho mundo, leio esses dias que os brasileiros são os imigrantes que mais regressam ao país de origem. Não deu certo? Bateu saudades? Ou simplesmente foi preciso mesmo voltar, por motivos que nada ou pouco tem a ver com o sucesso em terras portuguesas? As mudanças de país são realmente complexas e quem sou eu para dar um veredito sobre esses movimentos de vai e vem. De acordo com os dados do SEF, o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, o número de brasileiros em Portugal em 2018 cresceu bastante na comparação a 2017, apesar de as estatísticas finais ainda não estarem finalizadas. E 2017 já havia registrado um crescimento de mais de 5% em relação ao ano anterior. Hoje, já somos mais de 85 mil brazucas em Portugal. O problema é que muitos chegam com pouco planejamento, apesar de muita vontade e disposição. Isso pode explicar o fato de os brasileiros serem os estrangeiros que mais recorrem à Organização Internacional para as Migrações, (OIM) entidade que dá suporte àqueles que pretendem retornar ao país de origem e não possuem recursos necessários nem mesmo para a passagem. Em 2018, a OIM recebeu quase 700 inscrições com pedidos de ajuda, 90% das quais eram de brasileiros. Em 2013, os brasileiros representaram pouco mais de 70% dos inscritos. O orçamento anual do programa gira em torno de 1,5 milhão de euros.

Ainda que muitos não tenham experiências positivas, os brasileiros formam a maior comunidade de estrangeiros que vivem no país, com pouco mais de 20% dos mais de 420 mil imigrantes em terras portuguesas, de acordo com os dados de 2017 do SEF. E esse número não é maior porque mais de 1300 brasileiros foram barrados nos aeroportos portugueses em 2017, impedidos de entrar no país, o que representou 63% de todas as recusas. É o maior índice desde 2011. Depois do Brasil, as maiores comunidades que vivem em Portugal são as do Cabo Verde, Ucrânia, Romênia, China, Reino Unido, Angola, França, Guiné-Bissau e Itália, nesta ordem.

Cerca de 90 mil portugueses deixaram o país em 2017, 10 mil a menos do que no ano anterior. Foto: Lisbon International Airport.

Com tanto brasileiro chegando, vez ou outra ouvimos algum português meio que resmungando, levemente incomodado com a “brasileirada” por aqui. Mas é realmente a exceção. E basta entrar em algum táxi, por exemplo, e puxar conversa com o motorista para descobrir que praticamente todos eles têm ou tiveram parentes que moram no Brasil. Gostam de contar que já estiveram no país, que conhecem o nordeste e o Rio de Janeiro, principalmente (minha querida São Paulo não é o destino preferido para passear ou fixar residência, pelo que percebi nessa minha enquete informal com os taxistas de Ovar). Ou seja, agora a gente está vindo para cá, mas as coisas são como ondas. O movimento de vai e vem é constante.

Segundo o Relatório de Emigração de 2017, documento elaborado pelo Observatório da Emigração, cerca de 90 mil portugueses deixaram o país em 2017, 10 mil a menos do que no ano anterior. O principal destino continua a ser o Reino Unido. A queda na busca por outros países para morar é uma tendência que se mantém nos anos recentes, principalmente pela melhora nos indicadores econômicos portugueses, com destaque para a revitalização do mercado de trabalho. O pico de saída foi em 2013, quando 120 mil portugueses foram tentar a vida em outros países. Mas ainda que as condições estejam melhores agora, Portugal continua a ser, em termos acumulados, o país da União Europeia com maior número de cidadãos que vivem no exterior em relação à população residente, de acordo com estimativas das Nações Unidas. Há cerca de 2,3 milhões de portugueses levando a vida fora de Portugal (aproximadamente 22%), contra pouco mais de 10 milhões de cidadãos em território português. A França é o país onde há mais portugueses vivendo (615 mil, de acordo com os dados de 2014).

Os portugueses estão no Brasil desde o século XVI. Imagem: Acervo Digital do Memorial do Imigrante.

E no Brasil? Bom, não vale contar desde a época de Cabral porque seria covardia. Também de acordo com os dados consolidados pelo Observatório de Emigração, os portugueses no Brasil eram quase 140 mil em 2010. Dados mais recentes apontam que entraram praticamente 1300 portugueses no Brasil em 2015, de um total de quase 37 mil estrangeiros. Entre 2004 e 2013, os números apresentaram crescimento ano após ano, chegando a atingir pouco mais de 2900 entradas em um único ano (2013). De lá para cá, o número vem apresentando pequenas reduções, o que posiciona o Brasil como o décimo segundo país para onde mais portugueses emigram

E assim segue o movimento migratório de brasileiros e portugueses. A gente vem, eles vão. Eles voltam, a gente volta. E ainda bem que é assim. Tenho grandes amigos no Brasil que são filhos ou netos de portugueses, que um dia decidiram tentar a vida numa terra nova. Corajosos, ajudaram a desenvolver a cidade, o estado, o país que temos. E, que bom, geraram essa turma de gente boa, meus grandes amigos. Agora somos nós por aqui. Quem sabe daqui a algumas décadas os amigos dos filhos dos meus filhos, se estivermos todos ainda na terrinha, possam dizer que tem amigos bacanas que são netos de brasileiros…

***
Marcos Freire mora com a família em Ovar, Portugal, pequena cidade perto do Porto, conhecida pelo Pão de Ló e pelo Carnaval. Marcos é jornalista, com passagens pelas principais empresas e veículos de comunicação do nosso país. Escreve quinzenalmente no São Paulo São.

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