Cidade genial é cidade sem carro-dependência

Por James Scavone.

Existe uma foto dos anos 20 do século XX, ou seja, mais ou menos um século atrás, de uma pilha de bondes elétricos enferrujando em um ferro-velho de Los Angeles. Como dizem por aí, a Terra plana gira e capota e sempre apronta. Podemos imaginar logo mais uma foto parecida só que diferente em São Paulo, Oslo, Mumbai: uma pilha de carros com motor a combustão abandonados. 

Bondes descartados empilhados em um ferro-velho em Los Angeles, Califórnia. Foto: LA Metro Library and Archive.

Estou em Málaga, a convite da agência de promoção do comércio da região da Andaluzia, no sul da Espanha. Participo do Greencities & SMoving, um grande evento de mobilidade e cidades sustentáveis. Vem bem a calhar no Dia Mundial sem Carro estar em um lugar que começa a pensar seriamente em um futuro urbano sem carros – sem carros a gasolina ou diesel, diga-se. Eliminar carros totalmente ainda é um sonho distante. Cidades do mundo todo se curvaram ao transporte individual e criaram com muito custo (avenidas, viadutos, túneis, vias expressas) a dependência quase total. O vício por carros é cheio de efeitos colaterais: atropelamentos e acidentes, apropriação do espaço público, poluição sonora e do ar. Calçadas são espremidas e estreitadas em nome da promessa por mais faixas e mais fluidez. Carros sólidos não fluem. A promessa se evapora no ar contaminado. 

Empresas, profissionais, instituições e poder público estão presentes no #GreencitiesMLG & #SMoving22. Foto: James Scavone.

Assisto a diversos painéis com prefeitos de pequenas e médias cidades europeias, de gente ligada aos movimentos Smart Cities, cidades inteligentes. Nos estandes, softwares e hardwares para aumentar o QI das cidades: detectores de poluição, detectores de ruídos que disparam uma foto e multam os veículos mais barulhentos, detectores de desperdício da água (o petróleo da vez), bicicletas-cargo elétricas para uso de garis, óculos de realidade aumentada que colocam uma camada de informação a mais no espaço urbano, feito Pokemon Go, mas para cidadãos. 

A Fuse converte carros a combustão em elétricos.

Um dos palestrantes diz que quer transformar a turística Cadiz em Smart Destination com o uso de dados. Com dados disponíveis, o viajante vai poder encontrar informações sobre monumentos e museus e “estacionamentos gratuitos” na região, diz. É o carro, mais uma vez, no centro do algoritmo. Fico amigo de um romeno que mora em Dubai. Mihai Stumbea trabalha na Fuse. Digo a ele que sou ativista da bicicleta e dos patinetes e ele fala que trabalha com carros, mas se adianta: “você vai gostar”. A Fuse converte carros a combustão em carros elétricos. Seu ponto, e eu tenho que concordar, é que é uma solução mais sustentável e busca evitar a repetição da pilha de bondes/carros que serão abandonados nos próximos anos. Pode-se aproveitar 80% dos componentes e transformar a máquina poluente em um veículo de emissão zero, ele diz. Seus clientes, em geral, são carros clássicos: velhos fuscas, mustangs e outros “muscle cars”, que ganham um novo músculo. Mas também tem planos para eletrificar frotas de vans e caminhões, inclusive os de lixo. Completa com orgulho que está em andamento com um projeto com a Peel, marca de carros ingleses dos anos 60, que se intitulava “o menor carro do mundo” e dizia acomodar apenas “o motorista e uma sacola de supermercado”. 

Na década de 1960, o Peel P50 e o Trident eram os menores carros de produção do mundo. Eles estão de volta com um motor elétrico. Foto: Peel Engineering.

Vale entrar no site da Peel e ver o carrinho de três rodas e uma única porta. Elétrico fica mais simpático. Na palestra de um representante do governo da cidade de Dublin, fica clara a obsessão do poder público por dados e uso da inteligência artificial para analisar os sistemas da cidade. É a grande bola urbana da vez. O irlandês diz que cada cidade é única e que a melhor informação vem por volume. Números de acidentes, de ciclistas passando por uma via, carros usando uma rotatória, congestionamentos: analise-os e saberá. Parece moderno, mas nada mais é que urbanismo para principiantes: olhar para a cidade e entender o que é melhor a partir do uso que os cidadãos fazem dela. A inteligência de dados é a versão digital dos chamados “desire paths”, a trilha de grama amassada em uma praça que mostra que o caminho cimentado da prefeitura é pior que o caminho desejado e usado por quem passa por ali.

A “Volvo dos patinetes” quer recolocar a modalidade no mapa do transporte urbano global. Foto: Superpedestrian / Divulgação.

No estande ao lado, fico com inveja do nome de uma marca de patinetes: Superpedestrian. É o que queremos, no fim. Empoderar o pedestre, otimizar sua experiência na cidade, se possível, sem congestionamento, sem barulho, sem poluição do ar que respiramos. A marca de bicicletas Specialized tem um jeito interessante de vender suas bicicletas elétricas: duas vezes você, quatro vezes você, etc. O ciclista empoderado. Em vez de medir o motor em cavalos, como fez a indústria automobilística, mede em humanos. 

Por fim, fico alguns minutos conversando com a pessoa solitária no espaço da marca de carros voadores Aertec. Quem não achava que teríamos carros voadores a esta altura do século 21? Eu achava e tive que me contentar com um Suzuki Jimmy quando fiz dezoito (que adorava!). A Aertec é uma empresa de AAM, Advanced Air Mobility. Pergunto quantos anos faltam para que tenhamos carros aéreos nos céus de Málaga e ele diz: de cinco a dez anos, que a solução será testada nas olimpíadas de Paris em 2024, mas que serão apenas protótipos com pouca autonomia. Uma das barreiras é a regulamentação do céu das cidades. É preciso organizar o espaço: uma faixa inferior para drones de entrega, uma mais alta para táxis aéreos, uma outra para veículos de carga ou intercidades. É fácil prever congestionamentos destas novidades tecnológicas também. Trânsito na marginal Pinheiros e trânsito no corredor aéreo sobre ela. 

Os designers de hoje conseguiram combinar conceitos aeronáuticos e automotivos específicos para criar alguns protótipos espetaculares. Foto: Aertec.

Volto para o hotel com a palavra smart reverberando: smart cities, smart destinations, smart províncias, smart barrios. O mais interessante é que Málaga se autodenomina uma “Ciudad Genial”. É assim que se vende para o mundo. A inspiração foi a genialidade do filho pródigo da cidade, Pablo Picasso, e até a caligrafia do logo da cidade lembra a assinatura do pintor andaluz. Cidade eclética, misturada, romana, árabe, europeia. Málaga entendeu: genial é melhor que smart. Genial é inteligência com criatividade. Vamos precisar.

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James Scavone
James Scavone é redator e numtot. Fundador da Davinci Micromobilidade e do Sincronicidade, estúdio de branding e citizen experience.

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