Espelho, espelho meu

Adorei. Há algum tempo vinha pensando em escrever um texto sobre esse momento da vida (que, acreditem, chega para todos nós), mas não sabia como começar. Post lido, problema resolvido – começo então com a historiazinha de minha amiga: num dia qualquer, normalmente entre os 40 e os 50 anos, sem querer a gente olha para o espelho com um certo distanciamento e um pouquinho mais de atenção. E aí, o susto: quem é essa pessoa?

O espelho habita nosso cotidiano desde o começo das nossas vidas. Tem uma função importante já na primeira infância, ajudando a nos descobrirmos e nos apropriarmos de nós mesmos. (Lacan chama de “fase do espelho” o período entre os seis e os dezoito meses, quando a criança, ainda impotente e sem coordenação motora, antecipa imaginariamente a percepção e o domínio da sua unidade corporal – aí nasceria o primeiro esboço do ego.)

O espelho habita nosso cotidiano desde o começo das nossas vidas. Foto: Allure.

Essa relação com a imagem no espelho segue muito intensa pela segunda infância e pela adolescência, períodos de crescimento corporal e de transformações profundas e quase diárias. Com o correr da vida pautado por fases pré-determinadas (ensino fundamental, ensino médio, universidade), e nós sempre ansiosos pelo ingresso na fase seguinte, por meio do espelho investigamos cotidiana e atentamente cada novidade em nossa imagem: se o peito já cresceu, se os pelos ainda não vieram, se a espinha já sumiu… Na busca por descobrir quem somos e como somos, testamos mil possibilidades de cabelos, roupas e acessórios, ensaiando horas e horas,  frente a ele, nosso jeito de andar, de falar, de sentar, de dançar. Nesse período, a relação com o espelho é forte e íntima, nos auxiliando no processo de construção de nossa imagem e também de nossa identidade.

Entre os 20 e 25 anos, essa relação começa a se atenuar: o crescimento cessa e as transformações físicas já não equivalem a mudanças de fase. Entramos no mundo adulto com nossa imagem razoavelmente forjada, não apenas junto ao espelho mas também dentro de nossas cabeças –  já sabemos mais ou menos quem somos, como somos, do que gostamos, a que grupo pertencemos. Não precisamos mais ficar nos observando e analisando tão proximamente, todos os dias.

Entre os 20 e 25 anos, essa relação começa a se atenuar: o crescimento cessa e as transformações físicas já não equivalem a mudanças de fase. Foto: Glam Magazine.

A partir daí, nasce uma nova relação com o espelho, um pouco mais fria, quase distante. De amigo confidente, ele passa a objeto utilitário – um arrimo naquele momento de passar o batom (numa boca já conhecida), de fazer a barba (com seus pelos e falhas já mapeados) ou de orientar a simetria do nó na gravata. Seguimos, claro, olhando para nossa imagem ali refletida, mas sem vê-la de fato – acreditando já conhecê-la, deixamos de observar, investigar, (re)descobrir.

E assim seguimos em frente. 20 e poucos, 20 e muitos, 30 e tantos, 40. Sem atentar para as sutis mudanças que se sucedem em nossos corpos, caminhamos convictos de sermos sempre os mesmos, fixados naquela imagem de adulto que, dentro de nossas cabeças, contruímos de nós mesmos.

Nesse percurso, muitas vezes também não percebemos que o olhar dos outros para conosco vai se alterando. Num certo dia, alguém se dirige a nós usando ‘senhor’ ou ‘senhora’, mas não damos muita importância… achamos até bem educado. Outro dia, acontece de novo. E de novo. De repente, com exceção de nossos pais e nossos tios, todos estão usando ‘senhor’ ou ‘senhora’ para falar conosco.

Nesse momento, olhamos no espelho e voltamos a nos ver. Foto: Shutterstock.

Ao mesmo tempo, tem a história da roupa – aquela que é a nossa cara, que a gente tem há anos e adora porque nos faz sentir muito lindos (e que nos dá um certo orgulho, pois nos cabe superbem, tanto tempo depois, vejam só!) Aí um certo dia a gente resolve usar a tal roupa, veste, realmente ela cabe direitinho, mas surge um estranhamento: a composição final, a somatória daquele corpo com aquela roupa parece dar agora um resultado diferente daquele que conhecíamos tão bem. A roupa cabe, mas não nos serve mais.

Nesse momento, olhamos no espelho e voltamos a nos ver. E então descobrimos que a imagem que está ali não é a mesma que havia se congelado dentro de nossas cabeças – ali tem uma pessoa, como bem disse a Cacao, parecida com a gente, porém mais velha. Na imagem do espelho, estamos nós num futuro que, não havíamos percebido!, já chegou.

O difícil desse reencontro com nossa imagem é aceitar a fragilidade e a impermanência de nossos corpos – a inexorável finitude torna-se enfim concreta aos nossos olhos. No entanto, dar-se conta de que o tempo se esvai e que, independentemente da imagem que vemos no espelho, continuamos a nos sentir os mesmos jovens de sempre…hum… isso dá uma liberdade, e um poder… ;o)

***
Valéria Midena, arquiteta por formação, designer por opção e esteta por devoção, escreve quinzenalmente no São Paulo São. Ela é autora e editora do site SobreTodasAsCoisas

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