‘Metropolis’: um novo e extraordinário livro faz viajar pelo passado e pensar sobre o futuro das cidades

Uruk / Warka, situada no atual Iraque, é uma das primeiras cidades do mundo e foi povoada quase sem interrupção por mais de 5.000 anos. Imagem: Site Artefacts.O novo livro do historiador inglês Ben Wilson, “Metropolis: A History of the City, Humankind’s Greatest Invention“, lançado em 2020, (ainda sem data de lançamento no  Brasil) é um desafio para qualquer autor, pelo longo arco temporal que começa com a primeira grande cidade do mundo, Uruk, na Mesopotâmia de 4 mil a. C e chega até a megacidade de Lagos, na Nigéria contemporânea.

Cidade – o lugar da convivência e da troca

O livro se baseia em pelo menos duas teses explícitas. A primeira é que apesar de abrigar uma porção historicamente pequena da população mundial, as cidades foram sempre os lugares onde a experiência de convivência e de troca gerou a energia necessária para gerar invenções, inovações, que por sua vez ajudaram a gerar novas realidades.

A segunda tese é a de que cidades são mais do que os edifícios e ruas que as compõem, ecoando pensamentos que vêm desde a antiguidade. Na verdade, as ruas e edifícios permitem entender que tipo de gente morou por ali e quais eram suas relações sociais na época. Mas atenção, o resultado não é apenas uma consequência direta de processos históricos mas também contém um aspecto de auto-determinação. Afinal, cada cidade é diferente da outra.

As mais antigas termas romanas de que há conhecimento datam do século V a.C. em Delos e Olímpia, embora as mais conhecidas sejam as de Caracala. Imagem: Wikipedia.Esse passeio entre a grande escala dos impérios e a das relações cotidianas anima o livro, dá concretude e graça às descrições sensoriais. Afinal, se são as pessoas que fazem as cidades, por que não mergulhar nos cafés ingleses ou nas termas romanas com a massa da época? Os banhos romanos são o ponto de partida para entendermos as relações de poder na cidade, mas também servem para nos darmos conta da espetacular rede de infraestrutura do Império, que traz água de centenas de quilômetros de distância, trigo de milhares e que criou uma rede de cidades, cada uma com seu forum, seus decumanos e cardos e, claro, suas termas.

Dentro dessas reflexões comparativas, é possível ver alguns grandes temas que emergem. Não por acaso, eles são os temas que parecem ter de fato acompanhado a urbanização e as cidades ao longo do tempo.

Cidades também morrem 

Cidades surgem, crescem e até morrem. Roma, por exemplo, a maior das cidades da antiguidade, depois de invadida e saqueada foi minguando até que seus presumíveis um milhão de habitantes se tornaram 40 mil durante a Idade Média. E hoje é uma metrópole pujante e complexa. O grande desafio de hoje é, claro, a mudança climática e Wilson nos lembra de quão vulneráveis são as grandes cidades a pequenos aumentos no nível do mar.

O contraste entre a cidade e o campo

O confronto entre os valores da cidade e do campo aparece em várias fases das cidades. Desde sempre, a profusão de pessoas, de violência, de energia, de barulho e sujeira das cidades parecem ter sido incorporadas nos escritos e pensamentos, colocando-as como contraponto à pureza do campo.

A contradição hoje não faz tanto sentido, o movimento em direção à cidade parece inexorável, mesmo em populações tradicionalmente rurais, seja através de imposição centralizada, como na China, seja através de migrações espontâneas, como na África.

Cidade planejada e cidade orgânica

Paris antes e depois das reformas de Haussman. Imagem: Urban Planet.

Uma discussão tão cara aos urbanistas tem a ver com o surgimento das cidades e sua forma. A análise do vasto painel oferecido por Metropolis permite constatar que a cidade planejada sempre teve seu espaço, já no mundo helênico, chinês, romano, colonial espanhol, português ou inglês, passando pelos projetos de Le Corbusier, até chegar às novas cidades contemporâneas, como Songdo, na Coréia do Sul.

Há vários exemplos de cidades que dão saltos ao integrar grande projetos urbanos à espontaneidade e experimentação. Na Amsterdam do século XVII foram estabelecidos os parâmetros de ocupação e o sistema de canais concêntricos que guiou a cidade ao longo dos próximos séculos. Haussmann deu a Paris as feições atuais, mas segundo Wilson, tão importante quanto o que vinha em cima, é o que foi construído embaixo, o incrível sistema de esgotos. Já Londres rejeitou o planejamento centralizado no século XVII e continua a crescer descentralizadamente. Todas essas cidades, independente da forma de planejamento, são hoje centros vitais, onde existe um jogo dinâmico entre a cidade informal e não planejada e a cidade oficial e planejada – onde existe espaço para espontaneidade e experimentação.

Para Wilson, Tóquio é o exemplo mais eloquente do que pode ser uma mistura saudável entre o planejamento central e a ocupação uso cotidiano das pessoas. Sua malha de grandes avenidas que escondem as pequenas ruas com mistura de usos talvez seja o exemplo mais interessante de como isso pode gerar cidades interessantes sociáveis e o espírito de comunidade.

Sobre o Brasil

Rua Gonçalo de Carvalho, em Porto Alegre, que ficou conhecida como “a rua mais bonita do mundo”.Foto: Adalberto Cavalcanti Adreani.

O Brasil aparece pouco no livro. São Paulo e Rio são citadas en passant como exemplo dos grandes problemas de desigualdade das metrópoles do século XX mas com pouco  detalhe. Dois casos de soluções contemporâneas brasileiras aparecem ao final do livro:  o sistema de transportes desenvolvido em Curitiba, que influenciou BRT´s em centenas de cidades pelo mundo e o plano de arborização de setenta ruas em Porto Alegre ganha menção especial.

A pandemia e o futuro

A pandemia do Coronavirus já estava em pleno curso quando Wilson terminava o livro. Apesar disso, nas reflexões do historiador, o futuro não parece condicionado à pandemia. Talvez por escrever a respeito de um tempo longo, que achata pequenas variações, talvez por acreditar que o vigor das cidades vai perseverar, ou talvez por estar também preocupado com os efeitos do aquecimento global, ele não se arrisca a fazer previsões, mas reafirma sua crença no vigor das cidades, em buscar novas soluções e novas maneiras de viver em coletividade.

Por que ler esse livro?

Espaço público em Omotesando, em Tóquio, sendo usado no intervalo das crianças de uma escola da vizinhança. Foto: Getty Images. O livro tem charme, é bem escrito, tem pesquisa e é leve. Talvez sirva como um aperitivo para os livros mais pesados, mas é, em si, uma obra monumental. Ao terminar, o leitor fica com aquela sensação de ter feito uma viagem no tempo, detendo-se aqui e acolá, em tempos e lugares que explicam um pouquinho o que somos.

É possível até ler sem uma ordem definida, por que não? Podemos pular do bulevar parisiense ao souk de Bagdá, pesquisando momentos históricos, achando semelhanças e diferenças entre as vidas de gente que veio antes de nós. Outro autor de um livro interessante sobre as cidades, John Reader, diz em Cities, de 2004, que se as cidades não existiriam sem a raça humano, a questão é se nós poderíamos existir sem a cidade. Wilson parece ecoar esse pensamento. Na difícil ponderação sobre o futuro da raça humana, as cidades parecem ser a maneira mais eficiente de fazer as estimadas 10 bilhões de pessoas conseguirem partilhar do mesmo planeta.

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Mauro Calliari é administrador de empresas, mestre em urbanismo e consultor organizacional. Artigo publicado originalmente no seu blog Caminhadas Urbanas.

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