Entre tintas e cimento, o amor

Foi num final de tarde que meu pai anunciou: naquele dia não me levaria para a festa da colega de escola, iríamos numa grande construção onde uma surpresa me aguardava. Fiquei encasquetada. Afinal, numa obra, só se fosse para brincar na areia. Grande coisa!… Areia onde gato e cachorro fazem xixi e coco. Mal sabia eu… Antenado com tudo o que acontecia na cidade, meu pai preparou este dia em segredo: fomos à construção do que seria depois de alguns anos a FAAP, em São Paulo.

Para meu deleite, os artistas plásticos da época fizeram do canteiro de obras um verdadeiro atelier para os pequenos: cartolinas enormes, papel Kraft gigante e tintas de todas as cores que se possa imaginar, muito além do arco-íris.

Timidamente, fui largando da mãozona forte de meu pai, que me transmitia tanto carinho e segurança, e extasiada de tanta alegria acabei pintando tudo em tamanho gigante: a casinha de duas janelas virou um casarão com duas chaminés que soltavam fumaça rosa; o céu metade era dia – com um sol sorrindo –, metade era noite – polvilhada de estrelas, canteirinhos com flor, patinho, pintinho e até elefante. E, ainda, duas meninas no balanço, em pé, voando no balangar.

– Olha! Olha, pai. Olha como está ficando lindo. Agora vem cá para jogarmos purpurina! 

Tão entusiasmadas quanto eu, as crianças ao lado ficavam, cada uma, dando pitacos nos desenhos das outras, ora colorindo o telhado da casa de roxo, ora colocando bigode na cara da vovó ou do cachorro maior que a velhinha… De repente, estávamos todos não só com as mãos melecadas e coloridas, mas o rosto, os joelhos e as roupas – que ninguém lembrou que eram novas, de festa, e não para brincar com tinta.

Os artistas plásticos da época fizeram do canteiro de obras um verdadeiro atelier para os pequenos. Imagem: Shutterstock.

Meu pai, de longe, fumava seu cigarro, papeando com jovens casais que apontavam: – Aquela é a minha filha. – Aquele é meu sobrinho. – Aquele é meu enteado. Cada qual exibindo a sua cria com orgulho e carinho.

Foi uma tarde inesquecível no canteiro de obras daquele predião. Sim, eu sabia que ia ser um predião. Havia andaimes altíssimos, tratores, caminhões com muuuitos tijolos e cimento. Mas quando conto para os outros sobre tal tarde de domingo surge uma lágrima nostálgica, de saudades daqueles finais de semana na cidade que crescia. Saudades da menina que de mãos dadas com o pai descobria o mundo e seu colorido.

***
Marina Bueno Cardoso é jornalista e cronista com passagens pelos principais veículos de imprensa. Publicou em 2015 “Petit-Fours na Cracolândia” pela Editora Patuá e Descansar do Mundo em 2018 pela Editora Penalux.

 

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