A explosão dos tons: em 75 telas as transformações da arte europeia após o impressionismo

Elas jamais olham na direção do pintor. Sobre a areia, sentam-se descalças, resignadas ou inquiridoras, desinteressadas do mar. Estas são as duas mulheres que Paul Gauguin retratou ao chegar ao Taiti, em 1891, depois de abandonar um ambiente artístico considerado extinto. O pintor havia decidido que a ilha da Polinésia Francesa constituiria seu paraíso artístico, ou pelo menos ali estaria a resposta para as aflições presentes. Não mais refletiria na pintura uma realidade externa, como fizera durante o impressionismo. Agora seria seu próprio interior a se ver revelado no quadro, de maneira expressiva. O princípio seria o de libertar a cor, o de torná-la viva e violenta, como aquela a representar a areia da praia. Por esta razão suas anatomias de mãos e pés se tornariam inconclusas, quase desfeitas, em continuidade com o fundo do quadro.

Gauguin pintava o que sentia, um passo além de apenas reproduzir aquilo que via. E suas obras não mais seriam medidas pela capacidade de representar o real. O quadro se tornaria, por si, a realidade a ser apreciada. Da sua angústia descortinou-se o mundo representado em O Triunfo da Cor, a exposição que aporta no Centro Cultural Banco do Brasil, em São Paulo, a prosseguir na unidade do Rio de Janeiro entre julho e outubro. Em 75 telas de 32 artistas, expostas originalmente nos museus d’Orsay e de l’Orangerie, e organizadas pelos curadores do d’Orsay e da Fundação Mapfre por quatro módulos do CCBB de São Paulo, estão descritos os caminhos da arte pós-impressionista até o início dos anos 1920.

‘A Italiana’ (1887), de Van Gogh. Imagem: divulgação.

Por demais abrangente, mas fiel a seu tempo, o termo pós-impressionismo foi aquele escolhido pelo crítico britânico Roger Fry (1866-1934) para designar essa arte em transformação. Ele o aplicaria a tudo o que se sucedesse a Gauguin: a arte expressionista de Van Gogh, a estrutura revolucionária de Paul Cézanne, os experimentos de autores influenciados pela gravura japonesa, como Félix Vallotton, aqueles inclinados à exposição caricatural, como Paul Sérusier, e também os pontilhistas, que, à moda de Georges Seurat, obcecavam-se pela pincelada minúscula, a evocar os pixels da imagem virtual. 

Fry, um pintor inglês próximo ao grupo Bloomsbury, ao qual pertenciam as irmãs Virginia Woolf e Vanessa Bell, e que um dia revelara seu talento ensaístico ao descrever a arte dos grandes mestres italianos, agora ousadamente entregava sua pena à tradução da modernidade francesa. Não era coisa simples de ser feita. O mundo da arte caminhava pela difícil fronteira da dissolução figurativa. E quanto isto poderia ser entendido como aceitável pelo apreciador? Fry decidiu arriscar e, entre 1910 e 1912, promoveu duas exposições sobre o pós-impressionismo nas galerias Grafton, de Londres. Elas se tornariam as responsáveis por abrir as portas da percepção a um novo mundo. Era o “triunfo da cor” como o quer o título desta exibição brasileira, com a admissão dos nabis, autointitulados “profetas” (a partir da designação hebraica) desse procedimento, entre eles Pierre Bonnard e Maurice Denis.  

Possivelmente os olhos do espectador se voltem, agora, bem mais à novidade pontilhista representada pelo óleo sobre tela de grandes proporções Jovens Provençais no Poço, de Paul Signac, concebido em 1892, ou à recentemente descoberta tela do escultor Aristide Maillol, Perfil de Mulher, de 1896, um belo campo de experimentos sobre a intimidade, do que à verdadeira revolução significada por Odalisca com Calça Vermelha. O óleo sobre tela que Matisse concluiu em 1925 finaliza a exposição, no subsolo do CCBB. O pintor, contudo, completou o sentido da nova procura, em composições perfeitas nas quais expressava o inverso da melancolia romântica. Cada uma de suas cores sustentava e acentuava as outras, e a irradiação cromática se dava em um crescendo efusivo.

Um pontilhista como Signac, enquanto isso, não propunha qualquer novidade sob o aspecto composicional em relação a Matisse, e sua perspectiva vinha banhada numa ingenuidade infantil, os efeitos em detrimento do sentido. Mais brilho há na Modelo de Pé e de Frente(1886), de Georges Seurat. Ou na iluminação à luz de velas do Autorretrato Octogonal (1890), de Edouard Vuillard, que chega ao Brasil após deixar o d’Orsay pela primeira vez. O grande museu alega não ter podido pagar pela obra recém-descoberta. E, para mostrá-la ao público, serviu-se das leis do país. Na França, os proprietários ganham abatimento de impostos pela aquisição quando cedem a obra de arte para a exibição temporária nos museus.

Ao lado dos dois óleos sobre tela de Van Gogh, A Italiana(1887) e Fritilárias Coroa-imperial em Vaso de Cobre (1887), alinham-se obras de rara exibição no País, como O Salgueiro Chorão, de Claude Monet (1920), e A Toilette (1896), de Toulouse-Lautrec. Principalmente, além dos painéis esmaecidos de Maurice Denis, a evocar o Quattrocentoitaliano e originalmente expostos na capela do Colégio Saint-Croix de Vésinet, destacam-se os experimentos de Vallotton (1865-1925). Pintor, artista gráfico, escultor e escritor suíço, ele se estabeleceu em Paris em 1882, tornou- se amigo de Bonnard e Vuillard e expôs várias vezes ao lado dos nabis. Pintou retratos, nus, interiores e paisagens num estilo que, embora naturalista, revelava seu sentimento quase abstrato por formas simplificadas, influenciado pelas gravuras japonesas. Em sua série no CCBB, Vallotton acresce ao realismo quase fotográfico um mistério particular. Nos óleos sobre tela Interior, Mulher de Azul Remexendo em um Armário (1903) ou Misia em Sua Penteadeira (1898), mostra com mordacidade a inquietação da mulher nos lares burgueses onde está confinada. Seu balcão de maquiagem não se difere, em essência, da mesa da cozinha em que produz o pão.

Para o diretor cultural da Fundação Mapfre, Pablo Jiménez Burillo, pintores pós-impressionistas como Seurat ou Signac interessaram-se pelos aspectos científicos da cor segundo um sentido apenas naturalista. Mas, em Van Gogh, Gauguin ou nos “profetas” nabis, o olhar artístico dirigiu-se ao mundo primitivo, à moda do que preconizaram Kandinsky ou Franz Macke. “Não copie o natural demasiadamente”, ensinava Gauguin, conforme Burillo destaca: “A arte é uma abstração. É preciso extraí-la da natureza sonhando diante dela. Pense mais na criação que no resultado”.

Mulher Azul remexendo em um armário (1903), de Félix Vallotton. Imagem: divulgação.

Embora as seções não tragam material expositivo de apoio (livros, fotografias ou recortes de jornal), a edição futura de um catálogo pela Mapfre promete suprir a lacuna documental sobre a produção europeia nos últimos 15 anos do século XIX. Um período crucial para a arte, como a exibição quer assinalar. Uma pena, assim, que se dê a proibição, dentro dela, não apenas do uso de câmera fotográfica, mas também do velho caderno de esboços. Em função da estrutura física do CCBB de São Paulo, é preciso evitar que os visitantes parem no caminho e impeçam a passagem dos demais, argumenta a organização do evento. A proibição, contudo, deve permanecer no Rio de Janeiro, onde a estrutura física do CCBB é maior. Melancólico imaginar que essas medidas se tornem usuais aqui e em instituições estrangeiras. O que teria sido, por exemplo, de uma Anita Malfatti se, além de contemplar as obras clássicas, houvesse sido impedida de esboçá-las nos museus europeus dos anos 1920 onde sofisticou o aprendizado da pintura e do desenho? 

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Rosane Pavam em Carta Capital.

 

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