Ser pedestre não é uma atividade fácil no Brasil. Num momento de saturação da mobilidade urbana, muito se discute carros e bicicletas, mas pouco se fala daquela que é a mais simples (e talvez disruptiva) das alternativas: andar a pé.
Diz o próprio Satã, no conto-peça Macário, de Álvares de Azevedo, sobre as calçadas de São Paulo: “São intransitáveis. Parecem encastoadas as tais pedras. As calçadas do inferno são mil vezes melhores”. A capital paulista mudou bastante desde 1847, quando Azevedo estudava na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Os passeios para pedestres também. Mas não se pode dizer que necessariamente para melhor.Em um relatório que abarcava 12 capitais brasileiras, feito em 2012 pelo portal Mobilize Brasil, a nota média das calçadas de São Paulo foi 6,32, e isso garantiu à cidade um quinto lugar – à frente das três piores, Salvador, Rio de Janeiro e Manaus. Até a líder Fortaleza, com 7,6, ficou abaixo de 8, a nota mínima estabelecida no estudo para uma calçada de qualidade.
Sim, a vida do pedestre brasileiro não é das mais simples. E isso apesar de, segundo dados de 2007, da Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP), 38% dos deslocamentos nacionais em cidades com mais de 60 mil habitantes serem feitos a pé. Andar, entretanto, não é considerado uma forma de transporte pelo poder público brasileiro. “Andar a pé é uma coisa tão vinculada a nossa natureza que ela nunca foi encarada como uma forma de mobilidade”, afirma a urbanista Meli Malatesta, especialista em mobilidade não motorizada. “A partir disso, a estrutura urbana que dá apoio a essa forma de mobilidade nunca teve o destaque, a importância e a porção de investimento público que merece.”
Não tirar carta
Pedestre, a própria palavra, carrega uma conotação um pouco negativa, além do sentido original. Significa humilde, modesto, simples. Um carro, por outro lado, representa status. “A cultura do carro é tão forte que faz com que quem não tem se sinta para trás, o carro é um sinal de que você chegou lá”, diz Mauro Calliari, ex-executivo que mudou de vida e resolveu fazer mestrado de urbanismo, com uma dissertação sobre espaços públicos. “Quem anda a pé historicamente em São Paulo, e talvez no Brasil, é a pessoa que não conseguiu, que ficou para trás.”
Hoje, porém, a ideia de ter um carro começa a ganhar uma nova conotação. Significa estresse, pressa, poluição. “Estamos vivendo um momento de inflexão muito grande”, afirma Calliari. “Já tem gente que decide não tirar carta. E isso significa a quebra de um paradigma de que quem anda na rua, quem anda de bicicleta, é quem não tem dinheiro para comprar carro. Pode ser que esse sujeito simplesmente tenha decidido não ter um carro.” Para Calliari, há uma mudança cultural, valores de uma nova geração, mas também necessidade. “A cidade chegou num ponto tão insustentável que é difícil imaginar que não fosse ter alguma ruptura”, diz. “No fim, estamos abraçando uma mudança porque não tem outro jeito.”
Flanando
Não é só a dimensão prática do andar a pé que interessa Calliari (embora, claro, como estudioso e ex integrante Conselho Participativo Muncipal de São Paulo e criador do blog Caminhadas Urbanas, isso também o interesse bastante). O ex-executivo gosta de fazer longas caminhadas pela cidade, “caminhar como experiência sensorial”, apreciando o ambiente urbano. “Andar é um antídoto contra o narcisismo”, diz Calliari, que faz passeios de mais de 10 quilômetros pela capital paulista. “Essa talvez seja a coisa mais legal de andar: permite a você ver o mundo com olhos que não são só os seus. A capacidade de viver de fato aquilo que a cidade tem de melhor, que é a diversidade.”
Caminhadas urbanas são uma arte semiesquecida. Andar costumava ser parte importante, filosófica e artística, da cidade. Na Paris do século 19, o surgimento da cidade moderna trouxe também a figura do flâneur, um observador da vida urbana. “A rua se torna moradia para o flâneur, que, entre as fachadas dos prédios, sente-se em casa tanto quanto o burguês entre suas quatro paredes”, escreveu o filósofo alemão Walter Benjamim sobre o termo, cunhado pelo poeta francês Charles Baudeleire. Benjamim considerava o flâneur um arquétipo moderno, uma resposta para a alienação causada pelo ambiente urbano.
Um dos primeiros adeptos da ideia de planejamento humanista de Jacobs foi o renomado arquiteto dinamarquês Jan Gehl, autor do livro Cidades Para Pessoas, de 2010. Em um outro livro, ‘Public Spaces Public Life’ conta como, com pequenas mudanças ao longo de 40 anos, Copenhagen deixou de ser uma cidade rodoviarista, saturada de carros, e se tornou um dos maiores exemplo do planeta para mobilidade a pé e em bicicletas. “Uma boa cidade é como uma boa festa”, diz Gehl. “Você sabe que está funcionando quando as pessoas ficam por mais tempo do que o necessário.”
Se Copenhagen parece um exemplo distante da realidade brasileira, um outro pode nos parecer mais próximo: Bogotá. Prefeito entre 1998 e 2001, Enrique Peñalosa começou uma transformação na capital colombiana ao criar ciclovias, melhorar o transporte público e investir em espaços públicos. Isso tudo permitiu que camadas sociais mais baixas circulassem com mais facilidade, reocupando Bogotá, e ao mesmo tempo diminuindo o número de congestionamentos.
Sabino usava apenas carro, antes de fazer um intercâmbio na Cidade do México. Lá, passou a andar a pé e com transporte público – e assim se apaixonou pela cidade. “Demorei um tempo pra fazer essa relação, que o encantamento que eu tinha sentido pela cidade era uma consequência da forma como eu estava me deslocando”, conta. Quando voltou e passou a andar a pé também por São Paulo, teve a mesma sensação.
Uni-vos
Para Malatesta, assim como acontece com os ciclistas, a maior parte de quem anda a pé é de camadas sociais mais baixas – o cicloativisto é importante, mas não é representativo do usuário massivo de bicicleta. “Agora, o mesmo tipo de segmento que começou o movimento cicloativista está pensando um movimento que procura dar enfoque à mobilidade a pé”, diz. “É preciso sair da caixa metálica do carro.” (No mês passado, a Prefeitura de São Paulo anunciou que vai fazer 1.000 quilômetros de calçadas até o fim de 2016).
Pode-se dizer, inclusive, que andar é uma das características que nos definem: Charles Darwin afirmou que nossas mãos só ficaram hábeis para produzir armas porque não eram mais usadas na locomoção. Há quem teorize (os pesquisadores autralianos Rick e Mac Shine) que andar ereto é o que fez nossa espécie mais inteligente. Uma frase atribuída ao grego Hipócrates foi anotada assim há mais de 2 mil anos: “caminhar é o melhor remédio do homem”.
No livro ‘Born to walk: the transformative power of a pedestrian act‘, lançado em abril, o canadense Dan Rubinstein lista, em capítulos, como andar a pé pode transformar nossa saúde, mente, sociedade, economia, política, criatividade e espírito. “Todas as pessoas com quem falei, gente com destaque em diversos campos, demonstraram que uma ênfase renovada no caminhar pode ser um pequeno passo na direção de algo melhor”, escreve.
***
Texto de Renan Dissenha Fagundes na Revista Trip. Edição: São Paulo São.