Como o grafite está mudando a realidade de uma comunidade da zona oeste

Um arco-íris e uma bandeira totalmente negra estão no alto da imagem criada por Fel, 28, grafiteiro ligado à enorme tradição paulistana de pichadores. É uma alegoria sobre a anarquia, mas também representa a causa LBGT e as populações indígenas latino-americanas. O traço não é para ser – e não é – apuradamente bonito nem esteticamente perfeito. Vale mais a provocação. O trabalho, que toma uma das faces de um conjunto do Cingapura Água Branca, na subprefeitura da Lapa, zona oeste de São Paulo, coloca a juventude negra para brincar no alto dos prédios. É o que Fel vê como primeira necessidade. E ele parece não estar só.
 
A missão do Revivarte, com apoio do projeto ‘Tudo de cor para você’, das Tintas Coral, é levar aos moradores um respiro no dia a dia, ainda que a estética não seja exatamente a maior das prioridades. “A arte em si não vai mudar a vida das pessoas. A opressão policial, a ausência efetiva de dinheiro, a carência de políticas públicas… A arte não vai alterar isso. Mas ela estreita a própria comunidade dentro de si. É um passo para que eles ganhem capital político e humano para se mobilizarem diante de outras demandas”, explica Fel. Se o papel do grafite é esse, as coisas definitivamente estão caminhando lá no Cingapura. De 14 de setembro – quando começaram as pinturas – para cá, conta ele, o efeito das tintas e do spray começa a florescer. “Antes as crianças ficavam atentas se havia um (policial) civil à paisana por aí. Agora elas param, conversam, falam, aproveitam o dia”, completa o artista.
 

Pelas esquinas, o que se ouve é que o grafite teve um efeito imediato na ostensiva presença policial. As abordagens têm se tornado menos agressivas, ainda que velhos hábitos não se alterem com tanta velocidade. “A comunidade é muito próxima da Marginal Tietê e é bem pequena. Então é fácil para (os policiais) chegarem de surpresa. E eles estão aqui diariamente”. A fala é de Subtu, grafiteiro com trabalhos espalhados por grande parte da capital e idealizador do Revivarte. “A própria comunidade quer que a gente fique. Como estamos aqui, a polícia está pegando bem mais leve. Eles vêem que tem gente tirando fotos… Aí eles chegam de outra forma”. Subtu ainda não colocou seu trabalho em prática, mas a ideia já está definida: “Vai ser um palhaço fazendo malabares com a palavra paz. Porque aqui a polícia é muito repressora”.

O beco agora é motivo de orgulho. André Murched / HuffPost Brasil.

São oito empenas grafitadas. As obras têm entre oito e dez metros de altura. Com tudo pronto, são 850 metros quadrados de área transformada em arte. Chama a atenção a disposição de quatro obras, que não foram produzidas para serem vistas por quem chega à comunidade ou está de passagem, mas para fazerem parte da paisagem de quem vive por ali. O que apareceu como sugestão dos grafiteiros, bateu como um alívio para os moradores. “É que o beco já teve umas histórias trágicas”, disse Subtu. Ana Carolina Pereira dos Santos, 30, cabeleireira e representante da Associação de Moradores, confirma a história. “Na verdade, já tivemos usuários de drogas e outras pessoas que morreram ali. Era um beco que todo mundo até evitava passar. Agora já estão até colocando nome. Chamam de ‘Beco da Arte’, de ‘Beco da Alegria’”.

Os artistas só foram parar ali após convite dos moradores. A comunidade ficou sabendo do sucesso da empreitada da passagem dos grafiteiros pelo Parque do Gato, outro conjunto de baixa renda periférico, e tentou a sorte. Era a chance de fazer uma parceria para incluir cores nas instalações deterioradas pelo tempo e pelo esquecimento do poder público. Já são quase 20 anos sem o reboco do Cingapura Água Branca qualquer pintura. A proposta soou como música aos ouvidos de Mundano, Fel, Subtu e RMI, os residentes do projeto. Cada um já tinha garantido um espaço para seus traços. Eles e a comunidade queriam mais. Para os demais trabalhos foi aberto um edital, que contou com a participação popular e a inscrição de vários interessados. Só uma demanda parecia irremediável. Entre os contemplados precisava haver uma grafiteira. “Todas queriam uma mulher. Era geral. Não eram só as jovens. Todas diziam: precisa ter mulher”, conta Carol. A felizarda foi a artista Suzue, que foi estudar no Japão os traços orientais para agora deixá-los à mercê do tempo na gueixa grávida que registrou na parede do tal beco que um dia foi mais do que assombrado. Além da inclusão feminina, outras etapas do processo foram ratificadas democraticamente. Eleição é para ser respeitada, certo? “Foram 700 votos para os quatro desenhos principais”, lembra a representante da comunidade.

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Ítalo e a viagem (quase) psicodélica da periferia. André Murched / HuffPost Brasil.

Ítalo, 24, grafita desde 2008 e é outro que acabou selecionado diretamente pela comunidade. “Não sou daqui. Sou da zona leste. Então observei o que rola. A minha imagem tem um pouco do que é a estrutura dos prédios. E fala das pessoas que estão esperando para ir além do dia, para escapar de onde vivem. É uma janela aberta para outros mundos”. Diz ele que a aproximação e troca de experiências aconteceu também enquanto colocava a mão nas tintas. “As daqui pessoas querem entender o que está acontecendo. Todos dão bom dia, trocam ideia… O povo se conhece. E eles dão um suporte dentro do que elas podem”. O tal suporte inclui comida, suco, incentivo e papo. Muito papo.

Um simpático senhor de boné e sacola plástica confundiu a reportagem com os integrantes do Revivarte. Do Fel, cobrou os retratos “que estavam faltando”. O grafiteiro Mundano havia levado uma máquina fotográfica de revelação instantânea alguns dias antes e ele agora quer ter uma imagem em frente de todos os painéis.

A Severina Josefa Cardoso, 50, que toca o boteco colado na comunidade não se cansa de sugerir a fachada de seu comércio para os rabiscos. “É muito bonito, né? Vamos ver se quando eles terminarem dá um tempinho para fazer alguma coisa por aqui”.

 

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Mundano e a seca que já chegou para quem nada tem. André Murched / HuffPost Brasil.

Com a faísca acesa nos moradores, é hora de passar o bastão. A ideia é que moradores passem de espectadores a produtores de arte. Quem sabe não sai dali mais um grafiteiro dos bons para combater o cinza monótono da maior cidade da América Latina? Os pincéis já estão com a comunidade para revitalizar a quadra local. A missão é das meninas, meninos, mulheres e homens que moram por ali. “Nosso objetivo é claro: queremos a transformação social por meio da arte”, metralha Fel. “O grafite é um braço armado do hip hop. Armado de tinta e de ideias. E a ideia quando é expressa plasticamente é muito mais direta. Nós atacamos o olho, a visão”. E se a ideia do grafite é iniciar uma nova fase por ali, vai ser difícil encontrar alguém que tenha dúvidas de que o plano está dando certo.
 
 

Bruno Perê gasta o spray no beco. André Murched / HuffPost Brasil.

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Rafael Nardini no HuffPost Brasil.

 

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