Natureza viva da Tate Gallery na Pinacoteca de São Paulo

A Pinacoteca de São Paulo recebe uma centena de paisagens britânicas do acervo da Tate Gallery.

As duas freiras estão diante da morte. Ou do morto, que pode ser o observador do quadro. A jovem à esquerda retira a terra com uma pá, em um esforço raro que faz movimentar seu capuz, enquanto aquela à direita contempla com gélida resignação quem a vê. O rosário ornado por uma caveira pende de suas mãos em oração, enquanto a luz faz supor que o dia termina, embora ainda banhe intensamente os rostos, as vestes e as árvores do cemitério. Tudo inquieta nesse cenário, até mesmo a nuvem roxa que, a seguir uma simbologia escocesa, representa um esquife no ar. Sir John Everett Millais ainda não tinha 30 anos, em 1858, quando pintou o óleo sobre tela O Vale do Descanso, título de uma canção homônima de Felix Mendelssohn, como a prenunciar outras mortes. Com a obra, ele talvez não apenas decretasse o fim do observador, mas de toda a arte de então, da fé romântica e de sua própria futura carreira como grande pintor.

Um grande quadro reproduz além do instante. Sua luz, a composição e a cor concorrem para enriquecer um argumento poético no decorrer do tempo. Ou, pelo menos, eram assim os óleos que dos séculos XVIII ao XX descreveram as paisagens britânicas. O campo se tornara um refúgio depois que a Reforma protestante impedira a representação das figuras religiosas. A vida ao ar livre significava, porém, algo mais naqueles quadros, situado entre o belo e o sublime, conforme descreve a exposição gratuita A Paisagem na Arte: 1690-1998 – Artistas britânicos da coleção da Tate, até 18 de setembro, na Pinacoteca do Estado de São Paulo, em comemoração aos seus 110 anos. Nas nove seções sob a curadoria de Richard Humphreys (Descobrindo a Grã-Bretanha, Sonhos Pastorais, A Visão Clássica, Romantismo, Fidelidade à Natureza, Impressionismo,Redescobrindo a Grã-Bretanha, Um Novo Romantismo e Novas Paisagens, Velhas Paisagens), essa modalidade vem representada por grandes artífices, do insuperável John Mallard William Turner ao surrealista Paul Nash.

Millais, portanto, não seria o único, tampouco o maior britânico a pintar um tempo de mudanças, enquanto parecia apenas representar nos quadros as pradarias, as montanhas, o pôr do sol ou uma tempestade no mar. Contudo, um dia fora o mais promissor. Aos 11 anos, em 1840, ele adentrara a Royal Academy of Arts para tudo aprender e de tudo discordar. E, em 1848, enquanto as movimentações de massa anunciavam uma nova era a pensadores como Karl Marx, ele, na companhia dos amigos Holman Hunt e Dante Gabriel Rossetti, fundava uma irmandade secreta para desancar Rafael. Autointitulados pré-rafaelitas, esses pintores enxergavam artificialidade no artista essencial da Alta Renascença e se voltavam à Itália precedente, onde as formas, a seu ver, surgiam desafiadoras de tão puras.

Os pré-rafaelitas olhavam para o passado como qualquer um faria então. Desencantados com as promessas revolucionárias burguesas, desaguadas em cidades fétidas, os pintores do período voltavam-se a ideais campestres. O inglês John Martin (1789-1854), alguns anos antes, descobrira até mesmo um segredo no céu. Mais do que belo, pensou, ele era a face do terror, a representação, portanto, do sublime. Seu óleo sobre tela A Destruição de Pompeia e Herculano, de 1822, indica, na exposição da Pinacoteca, aquele pressentimento de que algo invisível aos homens determina seu cotidiano. Um céu avermelhado está prestes a engolir tudo e todos. A seguir o romantismo de então, no qual acima de tudo era exigida a expressão pessoal, o pintor conquistou enorme público. Nos museus, seus quadros vinham separados da multidão de admiradores por cordões.

Epítome de um período, Martin caiu de altura elevada, contudo, quando os tempos mudaram, entre outras razões porque John Ruskin desautorizara seu pincel cataclísmico. O aquarelista e crítico detestava o exagero sem pudor deste e de outros românticos. Eis por que admirara os pré-rafaelitas, rejeitados, contudo, por grandes pensadores da época, como o escritor Charles Dickens. Tal defesa custara a Ruskin a própria esposa, que, preterida em favor dos debates, acabaria nos braços de Millais. Em pouco tempo, transferido à Escócia onde ela morava, o pré-rafaelita abandonaria o movimento. “Não posso mais passar um dia inteiro a pintar uma área do tamanho de uma moeda de cinco xelins”, disse sobre sua antiga arte detalhista, que, transformada em fórmula ornamental, tornara-se objeto de cobiça dos mercadores.

Millais sumiu para que John Mallord William Turner (1775-1851) jamais perecesse. Emblema dos paisagistas, ele arrebatava admiradores por intuir a luz de forma inteiramente nova. Turner começou na pintura como um pitoresco, de uma escola de bucólicos que admitira, para elevar-se, a mitologia de origem grega, em uma representação algo próxima do óleo sobre tela Dido e Eneias (1814), um de seus quatro quadros expostos agora na Pinacoteca. Contudo, mais do que tudo isso, representou o romantismo de maneira duradoura. Viajou pela Europa por 40 anos. E anotou rápidos esboços a lápis de seus quadros para depois usá-los como pontos de partida em composições criadas pela imaginação. “Evanescente e aéreo, ele parece pintar com vapor colorido”, disse do artista um de seus contemporâneos, John Constable (1776-1837), autor do óleo sobre tela Chain Pier, Brighton, de 1826, em que resplandecem suas famosas nuvens. Ao contrário de Turner, Constable nunca deixou a Inglaterra. Mas advogava, para sua pintura, a verdade em primeira mão. “Não há dois dias iguais, nem mesmo duas horas”, escreveu. “E nunca houve duas folhas de árvore idênticas desde a criação do mundo.”

Os testemunhos de época garantem que Turner se amarrou ao mastro de um navio para experimentar a tempestade, de modo a pintá-la apropriadamente. Ou talvez, em razão do enorme talento, apenas lhe tivesse sido natural reproduzir o que estivesse à vista. Sua arte levaria à dos impressionistas, que, contudo, jamais teriam ultrapassado aquele seu tormento, a sua organização abstrata da luminosidade. Para Turner, a paisagem descrevia não somente um fenômeno físico, mas espiritual, algo facilmente perceptível em seus 300 óleos e quase 20 mil desenhos e aquarelas legados ao British Museum e à Tate Gallery. John Ruskin o adorava e o fez aceito em seu tempo. Mas ao crítico a história creditaria outra responsabilidade, dessa vez terrível. Após a morte de Turner, Ruskin destruiu seus desenhos eróticos, aqueles que, a seu ver, teriam manchado a memória de um grande herói. 

Rosane Pavam em Carta Capital. 

 

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