‘Smart cities’, possibilidades e pesadelos para a democracia

Entretanto, o que estamos vendo é diferente. A chamada mineração de dados garante o marketing segmentado, ou seja, a partir do percurso do usuário da internet pela rede, é possível descobrir suas preferências e assim, se apropriando (sem pagar para nós!) dos dados que produzimos, as empresas nos bombardeiam com propagandas específicas. Todos já devem ter vivido isto ao, depois de procurar alguma coisa na internet, passa depois  semanas recebendo propaganda daquela coisa. Se já se trata de uma apropriação de dados privados de muitos para os negócios de poucos, é ainda mais problemático se entram também nestes sistemas a disponibilização e articulação com os sistemas públicos de informação, como os dados policiais, judiciais e outros. E isto já começou a acontecer na China.

O episódio "Nosedive" (Queda Livre em português) da série "Black Mirror" retrata um universo onde as pessoas se avaliam através de notas. Foto Netflix / Divulgação.

O governo central chinês lançou um grande plano em 2014 para criar um sistema centralizado de “crédito social” até 2020. Este sistema  articula os dados que os cidadãos produzem no seu comportamento cotidiano com os dados que o governo tem a respeito deles. É um sistema de pontuação, e quem assistiu a série Black Mirror sabe muito bem do que estamos falando –  a ficção se tornando realidade. Este sistema coleta dados sobre a honestidade que as pessoas têm em relação aos programas governamentais( por exemplo se tem multas de trânsito ou não, se deve impostos ou não) , a integridade comercial (capacidade de pagar suas dívidas), social (não se envolver em brigas, bebedeiras, não ter amigos perigosos), jurídica (qualquer passagem na policia ) para criar um sistema de pontuação que pune os desviantes e gratifica os normalizados.

O chinês "Sesame Credit", gera uma pontuação de crédito social para usuários com base em fatores "holísticos". Foto: Divulgação.

Desde 2015, de forma experimental, oito companhias estão trabalhando nestes sistemas. Através de aplicativos como o Sesame Credit ou o Honest Shanghai, as pessoas são pontuadas e, dependendo dessa pontuação, elas podem ser bloqueadas quando reservam um quarto de hotel, impedidas de acessar certos empregos e até mesmo seus filhos impedidos de se matricular em escolas.

Na  Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU/USP), vários estudantes e professores  tem se debruçado de forma crítica sobre os riscos que essas estratégias, aparentemente visando construir cidades humanas e democráticas, aprofundem os mecanismos de vigilância e promovam mais segregação. Quem tem interesse pode acompanhar pelo menos dois trabalhos recentemente produzidos, um o vídeo Smart, produzido pelo aluno Andre Deak, como parte da disciplina da professora Giselle Beiguelman, e outro assinado pelo mestrando Gabriel Figueiredo, sob orientação do professor Artur Rozenstraten, chamado Cidades inteligentes no contexto brasileiro: a importância de uma reflexão crítica.

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Raquel Rolnik, urbanista e professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. Artigo publicado originalmente na Coluna Rádio USP.

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