Um passeio entre cavaleiros medievais

Durante esses dias, as cidades se transformam e voltam no tempo, resultado de uma belíssima produção. Foto: CM Santa Maria da Feira.

E cerca de quase mil anos depois da fundação do país, Portugal mantém viva a lembrança daqueles tempos passados, revisitando a história, discutindo temas polêmicos, revendo certezas e, principalmente, valorizando para as gerações seguintes a trajetória que os trouxe até aqui, mesmo que por caminhos hoje considerados meio tortos em alguns casos. Um bom exemplo disto são as feiras e festivais medievais que acontecem em todo o país, principalmente nesta fase do ano. Cidades como Guimarães, berço de Portugal, Óbidos e Santa Maria da Feira, apenas para citar algumas, voltam no tempo e se transformam em vilas medievais durante algumas semanas.

Dança para o Festim, no âmbito da Viagem Medieval em Terra de Santa Maria. Foto: CM Santa Maria da Feira.

Esta semana começa a Viagem Medieval em Terra de Santa Maria, um dos maiores eventos deste tipo, realizado anualmente em Santa Maria da Feira, cidade vizinha da minha Ovar, e tendo como epicentro o belo castelo medieval, construção que resiste a muitos séculos de batalhas. Este ano, toda a programação gira em torno do rei Dom Fernando I, o Belo, filho do rei Dom Pedro I, não o nosso (que aqui é o Dom Pedro IV), mas aquele da Inês, coroada depois de morta. Dizem que Dom Fernando era um monarca inconstante, responsável por grandes avanços, mas também por alguns conflitos. A grande festa, que vai de 31 de julho a 11 de agosto, já recebeu diversos prêmios em Portugal e outros países, na categoria Evento Cultural. Durante esses dias, a cidade se transforma e volta no tempo, resultado de uma belíssima produção. As áreas verdes ao redor do castelo viram grandes feiras, com cavaleiros e cavalariços, damas vestidas à caráter, jogos e danças, comidas e bebidas típicas. É possível, por exemplo, subir as muralhas do castelo por redes de escalada, como acontecia nas invasões medievais. O cotidiano na época de Dom Fernando é recriado na área interna do castelo e em vários núcleos espalhados pela cidade. Músicos, acrobatas, malabaristas, guerreiros, todos muito bem caracterizados, tomam posse da cidade. Espetáculos da dança, apresentações teatrais, cortejos e até apresentações com cavalos ajudam a recriar o clima medieval do século XIV.

O Mercado Medieval de Óbidos acontece no entorno do Castelo da cidade. Foto: Divulgação.

Outro evento premiado, e que segue até o próximo dia 4 de agosto, é a XVIII edição do Mercado Medieval de Óbidos, na linda cidade murada que também tem o castelo no centro das festividades. Nesta edição, o tema central é o fogo e o que ele representava na Idade Média. “Numa época em que o catolicismo está profundamente enraizado, quer pela apologia do pecado, da ansiedade e do medo, o fogo é visto como elemento tenebroso na sua representação do Inferno e do Mal, marcando a mentalidade do homem medieval. Na Arte da Guerra, é uma poderosa ferramenta nas estratégias de cerco que, com a introdução da pólvora, nos meados do século XIV, faz surgir grandes alterações na arquitetura militar dos castelos. Nas festas, o fogo tem o poder encantar: malabares e cuspidores exibem as suas artes dominando-o com mestria, engrandecendo os espetáculos nas noites de folia, para nobres, burgueses e gente do povo”.

A edição deste ano do Mercado Medieval de Óbidos que acontece no entorno do Castelo de Óbidos tem o fogo como protagonista. Foto: Divulgação.

O texto de apresentação já indica o protagonismo do fogo nesta edição da festa medieval de Óbidos. Apresentações teatrais, recriação da comunidade medieval e até mesmo a utilização de uma moeda especialmente cunhada para ser usada nas atrações e na compra de comidas e bebidas fazem desta feira de Óbidos uma das mais impressionantes de Portugal. Há também uma programação de palestras e mesas-redondas em que se aborda – direta ou indiretamente – o papel do fogo na cultura, no cotidiano e nas crenças medievais. Na parte da alimentação, ingredientes e bebidas que não existiam na época são proibidos nas barraquinhas. Ou seja, nada de refrigerantes, por exemplo. E as receitas devem incluir apenas os produtos disponíveis na idade média (minha sugestão: o sanduíche de porco assado na lenha acompanhado de sangria… não há cavaleiro que resista!).

Um dos momentos cruciais que ditou o nascimento de Portugal foi a Batalha de São Mamede, travada a 24 de Junho de 1128 Imagem: Reprodução..

Poucas semanas atrás foi a vez de Guimarães, cidade mais ao norte, considerada o berço de Portugal. Foi lá que Dom Afonso Henriques, filho do cruzado Dom Henrique de Borgonha, lutou contra o exército da própria mãe, Dona Teresa, que àquela altura já era viúva de Dom Henrique e havia se aliado a um nobre galego. A vitória na famosa Batalha de São Mamede, no ano de 1128, é considerada um dos marcos do nascimento de Portugal como país. Assim, Dom Afonso Henriques passou a ser o primeiro rei de Portugal. Este ano, a Feira Afonsina trouxe a vida de Egas Moniz, aio de Dom Afonso Henriques, para o centro da festa medieval. Naquele longínquo século XI, Dom Afonso VII era o todo-poderoso de toda a região, incluindo as terras que mais tarde viriam a ser o país Portugal. Dom Afonso Henriques, primo de Dom Afonso VII, já estava no pedaço, mas era “apenas” o Conde de Portucale, que então pertencia ao reino de Leão. Como tal, Dom Afonso Henriques devia prestar vassalagem ao primo Afonso VII, apesar de não gostar muito da ideia. Os atritos familiares eram grandes, mas Egas Moniz, responsável pela educação de Dom Afonso Henriques, conseguiu, de forma diplomática, interceder e garantir que seu “pupilo” iria respeitar o primo imperador e prestar vassalagem a ele. Fez isso dando a sua palavra de honra ao imperador em uma das muitas batalhas que os primos insistiam em lutar. Mas a paz durou pouco e, ao ver que Dom Afonso Henriques não cumpriu o que foi acordado, Egas Moniz, que havia empenhado a sua palavra e sua honra, teria ido entregar a sua vida e a da sua família a Dom Afonso VII, como forma de demonstrar que a palavra dada não deve ser desonrada. O imperador se compadeceu da nobreza de Egas Moniz e não o matou, diz a lenda.

Estátua de Dom Afonso Henriques, protagonista da Batalha de São Mamede que se tornou o primeiro rei de Portugal. Foto: CM Guimarães.

As festividades em Guimarães também recriaram o cotidiano medieval ao redor do castelo, os acampamentos militares, as feiras, as apresentações teatrais e musicais. Comidas típicas, sangrias, vinhos, cavaleiros trajados, damas, artistas, nobres e burgueses, cartomantes e até mesmo pedintes e mendigos circulavam entre os visitantes. Para os que foram com crianças, difícil sair sem um elmo, um escudo ou uma espada de brinquedo…

E se alguém se animar a viver alguns momentos da vida medieval em Portugal, ainda dá tempo: os ingressos continuam à venda. A diversão é garantida! E para quem gosta de história, os eventos têm um apelo ainda maior. Ou, se a vida reis da Idade Média não tiverem a menor graça, vale pelos sanduíches de porco, pelas sangrias…

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Marcos Freire mora com a família em Ovar, Portugal, pequena cidade perto do Porto, conhecida pelo Pão de Ló e pelo Carnaval. Marcos é jornalista, com passagens pelas principais empresas e veículos de comunicação do nosso país. Escreve quinzenalmente no São Paulo São.

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