Alguns lugares parecem conter em si um DNA da história da cidade, numa espécie de metonímia urbana. O Anhangabaú é um deles.
Se é verdade que, como sugere o sociólogo espanhol Manuel Castells, o espaço é uma expressão da sociedade, o Anhangabaú pode contar muito sobre a sociedade paulistana e suas transformações.
Assim, se viajarmos no tempo, através das fotos históricas até hoje, podemos acompanhar um pouco do espírito de cada época. Quem sabe isso ajude a pensar no novo projeto?
Durante o século XIX, o vale era um cenário bucólico, com o Ribeirão Anhangabaú cercado de plantações e algumas casas nas encostas. Nada na foto acima podia preparar os habitantes para as transformações que viriam.
No início do século XX, a vila já havia se transformado em cidade e o vale virava um jardim.
O dinheiro do café, a República, a abolição, a imigração e o início da industrialização sacodem a vida e abrem espaço para um espaço urbano à altura dessas mudanças.
O projeto para o vale partiu do Plano Bouvard, de 1911, compondo, com o Teatro Municipal e a Líbero Badaró alargada, uma paisagem quase francesa. O complexo não chegava até a São João, que seria promovida a avenida em 1912 e, até 1930, alargada e transformada no grande palco da modernidade paulistana.
No início da década de 1950, o vale é violentamente transformado numa passagem de carros, parte de uma das pernas do chamado ‘sistema Y’, do plano de Avenidas, de Prestes Maia.
Edifícios são suprimidos, vias alargadas e uma passagem subterrânea é criada. O Anhangabaú deixa de evocar rios, plantações, jardins e paisagem e se transforma num eixo viário, representando as aspirações de deslocamento rápido e mobilidade a todo custo dos paulistanos.
É o momento em que a cidade sacrifica a qualidade de seus espaços públicos e começa a sofrer do mal que acometeu as grandes cidades durante o século XX, o rodoviarismo, ou seja, a prevalência dos fluxos de passagem sobre os lugares.
Na foto acima, alguns pedestres tentam em vão atravessar a rua. Os dois lados do vale se desconectam.
Alguma coisa não fazia sentido. De um lado, um milhão de pessoas circulando a pé pelo centro, obrigadas a dar a volta para atravessar o vale pelos dois viadutos, o do Chá e Santa Ifigênia. De outro, 12 mil carros por hora, ocupando um dos espaços mais simbólicos da cidade.
Com esse diagnóstico, em 1991, a Prefeitura realiza um concurso público, com mais de 150 projetos inscritos, numa mostra da importância do assunto. É escolhido o projeto de Jorge Wilheim e Rosa Kliass. A solução, nas palavras, de Wilheim, foi “óbvia”: esconder os carros num túnel e liberar espaço para as pessoas em cima.
Resgatado do julgo do carro, nas próximas décadas, o Anhangabaú é palco de manifestações, shows e até a fan fest da copa de 2014, mas sem ser brilhante como espaço de vida cotidiana. Passa-se por ali, mas prefere-se os viadutos. Estaciona-se por ali, mas não é tão agradável assim.
Em 2019, a Prefeitura anunciou o projeto de requalificação do Anhangabaú, retomando um projeto concebido na gestão anterior, através de um processo de workshops, com convidados interagindo com o escritório do influente urbanista dinamarquês Jan Gehl. Gehl é uma referência em espaços públicos no mundo e um dos arautos da ‘cidade para pessoas’.
Os workshops ajudaram a mostrar as rotas de circulação das pessoas e apontara sugestões na melhoria de ligação com as colinas, na reconstituição do eixo da São João, na abertura de lojas no vale e no resgate das fachadas ao redor.
O custo não é baixo, cerca de R$ 80 milhões, e tem sido objeto de questionamentos. Havia problemas que talvez pudessem ter sido endereçados sem gastar tanto dinheiro, como o infame buraco para os banheiros que cortavam a passagem da São João, a falta de pontos de atratividade, como algum comércio, ou um café, a própria dificuldade em atrair frequentadores, os acessos à colina e a falta de lugares de permanência.
Por outro lado, não houve propriamente audiências públicas que conseguissem submeter as propostas ao crivo de frequentadores e comerciantes, e há pelo menos um ponto muito controverso, umas fontezinhas que serão ligadas em dias de calor. Quem já andou pelas fontes do centro sabe a dificuldade que é manter o funcionamento, a limpeza e a segurança desses lugares.
Mais uma vez, o vale vai mostrar a face da sociedade que o criou.
Já tivemos plantações, já escondemos o rio, já andamos num jardim europeu, já vimos a dominância dos automóveis, já vimos esforços para trazer as pessoas de volta.
Agora, esperamos que a cidade que está se reencontrando com seus espaços públicos assista pelo menos o renascimento de um lugar de encontro, de inspiração e de respeito à sua história.
Diante de tudo o que o vale do Anhangabaú representa na história da cidade e do gasto já empenhado, vou torcer para o projeto dar certo e cobrar para que seja incrível. O mínimo que deveríamos esperar nesse momento é que a gente invista nosso dinheiro para criar um espaço maravilhoso, que sirva de ponto de encontro e que faça jus à importância simbólica desse lugar.
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Mauro Calliari é administrador de empresas, mestre em urbanismo e consultor organizacional. Artigo publicado originalmente no seu blog Caminhadas Urbanas.