O pós-gourmet paulistano existe?

O menu da casa será reformulado, apresentando um numero bem menor de pratos, e de forma que se possa reduzir o preço da refeição. O público não quer mais comer “sofisticado”, preferindo uma cozinha mais amigável e familiar.
 
Isso já era perceptível há um bom tempo. O suficiente para surgir uma cozinha com ares e cacoetes gourmets mas em ambientes simples ou simplórios, despojados, comparativamente baratos. Coisas bem feitas (ou nem tanto), mas suficientemente diferentes de uma comida de boteco qualquer para dizer-se especial. Simples, mas não “popular”. Algo que se prenunciava na idéia de “culinária ogro”.
 
Lugares que contam também com uma critica “especializada” e favorável, resquícios cambaleantes do discurso legitimista que a gastronomia sempre precisa. Um público de classe média, de repente empobrecida pela crise, não pode, afinal, dar de cara com a simples e brutal realidade das grandes massas proletárias ou desempregadas.

Mesmo que coma arroz e feijão, será um feijão abençoado; um pudim de leite condensado que será, obvio, “o melhor de São Paulo” e, portanto, quiçá do mundo; o ovo frito assoma à condição de iguaria; o reles hambúrguer  vira o máximo dos máximos, assunto infindável nas redes. A crítica desce do Olimpo para dizer: “repare, vocês aqui de baixo também comem bem!”.
 
Mas se o discurso gourmet se desmonta no ápice da pirâmide, como parece que está ocorrendo, todo ela desmoronará. E, então, vale perguntar: qual será o appeal a substituir o gourmet dessacralizado? Claro, não estamos falando de comida, mas de discurso sobre a comida… 
É certo que se tentou fazer do ingrediente o elemento principal de um novo discurso de cunho gourmet-legitimista. O ATA apostou forte nessa direção, mas a julgar pela relativa indiferença pública diante do pool de suas lojas no Mercado de Pinheiros a estratégia não irá longe. Talvez, para matar a charada, precisemos observar a efervescência do simples, do amigável, do familiar não institucionalizado em restaurantes. Muita gente que cozinha resolveu dar a cara para bater, oferecendo os artesanatos alimentares mais variados. Cada um com uma tradição étnica ou familiar, cada um com suas preferências dietéticas (atenção, o gourmet terá que incorporar essa dimensão ao longo do tempo), resultando numa cozinha ainda sem nome, onde, às vezes, se destaca um acento coreano, polonês ou mesmo caipira.  

A “institucionalização” dependerá da rede de relações dessa gente, da “força” para atraí-la para um endereço que funcione num modelo próximo ao que se reconheça como “restaurante”. Não é atoa que palavras como “comedorias”, “armazéns” e equivalentes batizam lugares para se tomar uma refeição sem serem o “restaurante” propriamente dito. A busca da informalidade é também a busca da superação do modelo anterior.  

Quanto à comida, não haverá fidelidade a estilo ou etnicidade alguma. Vale tudo, desde que bem feito, acolhido por um público primário de amigos e, depois, capaz de crescer pela simpatia angariada. E bem feito é o memorável, o que me lembro no dia seguinte e pode, inclusive, me despertar a vontade de comer de novo. 

O discurso gourmet “clássico” ficará para trás, para ser retomado como discurso triunfante quando a crise passar, se passar. Ficará sob guarda dos que teimam, insistem em pesquisar, financiados pelo bolso próprio ou por um público cada vez mais restrito que ainda acha que vale a pena essa empreitada.

***
Carlos Alberto Dória, sociólogo e conselheiro do São Paulo São, tem vários livros publicados sobre sociologia da alimentação. Mantém e edita o blog e-BocaLivre.
 
 
 

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