A estrela do Capão

A frase escrita em uma lousa que indica o menu do dia, colocada ao lado de um contêiner, não deixa dúvidas de que o negócio em questão possui um grande sentimento de identidade: “Do Capão para o mundo”. Afinal, nesta “quebrada” da Zona Sul da cidade de São Paulo, a cultura fervilha. O som é o rap, de Racionais MC’s, Negredo e Detentos do Rap. A roupa é aquela típica de mano: boné, tênis da hora, cordões e pulseiras de metal. Ih, mas e na hora em que bate aquela fome? Bem, aí o jeito é se refugiar em alguns dos endereços de comida saborosa: “Tipo prato de mãe, tá ligado?”. É neste ambiente de efervescência cultural que estão nascendo alguns dos mais instigantes e inspiradores movimentos de cozinha autoral da cidade.

Duvida? Então, converse com Wellington Ramos Rech, morador da quebrada. “Meu sonho é fazer da região um polo gastronômico”, disse a 1 Papo Reto, numa tarde cinza de domingo, enquanto preparava quitutes deliciosos no contêiner instalado na Praça dos Arcos, no final da avenida Paulista, perto da avenida Consolação.

É num dos pontos mais tradicionais da cidade que Wellington espera “ganhar moral suficiente” para voltar ao Capão, onde mora, e montar seu negócio. Antes, no entanto, ele terá de passar pelo crivo do exigente público que vive e trabalha na região. Muitos dos quais acostumados a degustar iguarias em viagens pelo Brasil e ao exterior. Sem contar os funcionários de restaurantes renomados. “Na hora que a fome aperta, eles vêm é aqui atrás de uma comidinha caseira”, conta Wellington que, com sua arte e seu trabalho, inaugura o Projeto Cozinha São Paulo, do Instituto Mobilidade Verde.

A iniciativa é mais uma das criativas tacadas de Lincoln Paiva, que lançou no Brasil os parklets (praças compactas instaladas no lugar de duas vagas para carros). Jornalista de formação e ativista por convicção, o presidente do Instituto enxergou na “baixa gastronomia” uma forma de encurtar distâncias na metrópole. Durante 12 meses, um chef diferente vai ocupar o espaço onde poderá preparar e vender sua arte culinária. “O sonho é deles. O que fazemos é fornecer as ferramentas para que estes empreendedores possam impulsionar suas carreiras na área gastronômica”, diz.

E foi neste devaneio que Wellington embarcou, em setembro, ao se tornar o primeiro chef a ocupar o transado contêiner de metal, pintado na cor branca. Ele diz que não sentiu medo, tampouco questionou a guinada na carreira de pedagogo para empreendedor da área de alimentação. “Era meu sonho de infância”, conta. E não é exagero. A gastronomia está muito vinculada à sua vida desde os 10 anos de idade. A primeira incursão à cozinha aconteceu logo após assistir ao programa X-Tudo, da TV Cultura, que mostrava um personagem bonachão e glutão preparando pratos. “Cara, quando eu vi ele cozinhando, fazendo coisas que as criança podiam fazer, fiquei apaixonado!”, recorda Wellington. “Me meti na cozinha e fiz umas carolinas. Ficou uma porcaria, mas eu curti pra caramba.”

Entre o sonho de montar um negócio próprio e a realidade, muita coisa aconteceu. E nem todas foram boas. A infância dura, em Teodoro Sampaio (SP), deixou marcas. Para economizar, sua família plantava mandioca no quintal de casa. O tubérculo era devorado em um esquema de aproveitamento integral. Primeiro as folhas, que passavam por escaldamentos para extrair as toxinas prejudiciais à saúde. Na sequência, elas eram refogadas e servidas com arroz. Este era o cardápio de alguns dias. A mandioca propriamente dita só entrava em cena depois que acabava o estoque de folhas. “Foi nesta época que comecei a sentir a necessidade de degustar coisas diferentes”, diz.

Às experiências com pratos caseiros, cujas composições ele copiava de receitas publicadas em revistas, continuou sendo uma constante em sua rotina. O empreendedorismo, também. Aos 13 anos, Wellington montou uma barraca de pastel, depois tentou ser dono de lanchonete. Contudo, o lugar era muito acanhado e tinha cara de “pé sujo”, o que afastava a freguesia. Outra aposta foi na produção de salgados e chocolates artesanais, vendidos de porta em porta para as tiazinhas da comunidade na qual morava.

Ingredientes diferentes: a alta gastronomia

A, digamos, virada gastronômica, veio quando a família se mudou para São Paulo. Precisamente, quando seu pai conseguiu um trampo de zelador num prédio chique do bairro de Santo Amaro, na zona sul. “Fiz amizade com garotos ricos, que me levavam pros rolês em restaurantes de primeira linha”, conta ele. “Ia sempre como convidado, pois não tinha dinheiro para pagar a conta.” Os novos sabores fizeram com que Wellington intensificasse ainda mais seu desejo de cozinhar. Seus primeiros degustadores foram os familiares, a quem ele apresentava os pratos que conhecia nas incursões aos restaurantes chiques. Na hora do vestibular, a realidade financeira continuou falando mais alto. Em de vez de gastronomia, decidiu cursar pedagogia, pois a mensalidade do primeiro curso era alta demais para quem ainda vivia de bicos, especialmente como ajudante de cozinha em restaurantes populares.

Dessa época ele guarda sentimentos ambíguos. “Fui muito humilhado e me subestimaram bastante, mas me ajudaram muito, também.” O que ficou foram lições e a possibilidade de fazer alquimias com molhos e temperos. Mas tudo natural, nada de ingredientes processados e embalados. “Embalagens, só as que Deus fez”, pontua este seguidor confesso do badalado chef britânico Jamie Oliver, cujos programas assistia na TV por assinatura. “Sou muito fã dele. Aprendi bastante lendo seus livros e mergulhando em sua ideologia”. Isso ficou evidente no cardápio escrito a giz na lousa colocada ao lado do contêiner, onde 1 Papo Reto entrevistou Wellington.

 “O meu cardápio aqui é 95% artesanal”, diz. E poderíamos dizer que é 100% delicioso. Afinal, fizemos questão de degustar e adquirir algumas porções, caprichosamente servidas e embaladas por sua mulher, Caroline Ramos Rech, que conheceu no curso de pedagogia da Unasp e que atua como uma espécie de faz-tudo: lava a louça, escreve os cardápios, atende a clientela, cuida do caixa…

A falta de uma educação formal na gastronomia não tira o brilho do trabalho de Wellington. Ao contrário. Sua experiência traz a certeza de que ele prepara apenas os pratos que guardam memórias afetivas. É a gastronomia na função mais clássica, de unir as pessoas. Mas para ser reconhecido em um mercado exigente como o paulistano é preciso bem mais que inspiração. Por conta disso, os gestores do Cozinha São Paulo fizeram parcerias com chefs experimentados e escolas de gastronomia que funcionam como mentores dos 12 cozinheiros eu passarão pelo contêiner.

Wellington, por exemplo, foi “adotado” por um trio da pesada: o chef Checho Gonzales (da Cebicheria Gonzalez), o chef Dagoberto Torres (Suri Ceviche Bar) e o chef Márcio Silva (Buzina Truck burger). “Eles me incentivaram a trazer um pouco da minha infância para a cozinha”, explica. Lembra da mandioca? Pois é, ela é a estrela do prato Trio do Capão (purê de mandioca, carne “louca”, topping de repolho roxo e coentro). A origem nordestina de sua mãe aparece no Cuscuz da Edilene (cuscuz com manteiga, ovos, frango com especiarias e coentro), que tem uma versão vegana, com vinagrete no lugar do frango.

Mesmo antes de concluir a jornada de 30 dias, Wellington já tinha diante de si algumas portas abertas. O pessoal do Buzina o chamou para trabalhar lá. Além disso, a experiência em uma região cercada de bairros de classe média alta, também vem enriquecendo seu repertório de vida. Sempre que surge uma oportunidade de ele “mandar uma ideia” para os clientes a respeito de suas origens. “Já atendi de rabino a chef renomado aqui neste balcão”, conta, com indisfarçável orgulho. “Os clientes se interessam em saber um pouco mais sobre minha comunidade.”

É nesta interlocução com a rica diversidade paulistana que o aspirante a empreendedor da gastronomia espera fazer os contatos necessários para viabilizar o sonho de montar um food truck bem estiloso, no Capão. “Em vez dos manos atravessarem a cidade para degustar uma comida de qualidade, quero ver o pessoal daqui indo lá para saborear as delícias da minha quebrada.”

 “Muitos brasileiros trocaram a convivência pela conveniência”

Não é exagero dizer que o Projeto Cozinha São Paulo sintetiza boa parte do espírito paulistano. De um lado, a gastronomia autoral, temperada com influências globais de uma das cidades mais cosmopolitas do planeta. De outro, a preocupação com a reocupação de espaços públicos, num processo de ganha-ganha com o poder público. O molho dessa história toda é a vinculação com a mobilidade: tanto a social como a relativa à locomoção das pessoas. Tudo isso cabe num contêiner de 4 metros de largura por 1,2 metro de profundidade, a parte mais visível da iniciativa comandada por Lincoln Paiva, presidente do Instituto Mobilidade.

Graduado em marketing, este paulistano inquieto correu o mundo. Visitou 100 cidades como participante de missões técnicas sobre experiências de requalificação urbana e mobilidade. Antes de voltar ao Brasil, em 2007, ele trabalhou por cinco anos numa agência ambiental em Lisboa. Retornou desta jornada completamente transformado e com muitas ideias na cabeça. A partir dessas viagens, ele acabou se especializando em mobilidade sustentável e hoje divide seu tempo entre o comando do Instituto, a agitação empreendedora e as atividades acadêmicas de professor de pós-graduação na Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal do Paraná (UFPR), onde dá expediente, a cada 15 dias. “No Brasil, dizemos que as cidades não têm jeito. Mas o que precisa mudar é a cabeça das pessoas, a forma como elas se relacionam com o espaço urbano”, destaca. “Muitos brasileiros trocaram a convivência pela conveniência.”

Para mudar o mundo, começou por si mesmo. Abandonou o carro e resolveu investir em projetos colaborativos com pegada socioambiental. Trouxe para o Brasil o conceito de parklets, estruturas que se assemelham a minipraças, instaladas em espaços de vagas de carros nas vias públicas. Para montar o projeto, ele lançou mão dos conceitos que formam sua visão de mundo. Escolheu a dedo a Praça dos Arcos, um local central cercado por residências de alto poder aquisitivo e pessoas ávidas por novidades, na área de influência da avenida Paulista, que se tornou ainda mais emblemática depois que ganhou uma ciclovia. Chegou ao lugar devagarzinho, e “negociou” com os ocupantes e moradores do entorno. “Cada espaço público tem uma vocação. E esta praça, com este mirante lindíssimo, tinha de ser aproveitada como espaço gastronômico”, argumenta.

Feirinha gastronômica ou algo com a mesma pegada elitista foram riscados do cardápio, logo de cara. “Nosso objetivo era instalar um projeto com viés comunitário e capaz de abrigar pessoas de todos os perfis socioculturais”, explica. Como já sabia o que não queria, ficou fácil descobrir o que desejava. E a decisão foi baseada em três vertentes: transformação social, incentivo ao empreendedorismo e à agricultura sustentável e educação. Para entender melhor o primeiro componente, ele fez incursões pelo Capão Redondo, bairro da Zona Sul conhecido pelos problemas típicos de comunidades pobres (violência e falta de infraestrutura), mas onde acontecem muitas coisas boas também.

Para colocar a ideia de pé, o instituto investiu R$ 350 mil, captados com diversas empresas. Em outubro começa o crowdfunding (uma espécie de vaquinha virtual) para levantar mais recursos para o projeto. Os aspirantes a empreendedores gastronômicos passam por treinamento com os chefs parceiros e aprendem toda a dinâmica do negócio. Da conservação dos ingredientes à montagem do cardápio, passando pela contabilidade. Eles recebem até R$ 3 mil para adquirir os ingredientes e ficam com toda a receita gerada com a venda das refeições. Os produtos são adquiridos de agricultores orgânicos, situados no bairro de Parelheiros, no extremo da Zona Sul.  “Meu desejo é que este trabalho se transforme em uma Tecnologia Social que possa ser absorvida pela cidade”, destaca o presidente do Instituto Mobilidade Verde.

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Rosenildo Ferreira no portal 1 Papo Reto, titular da coluna Empreendedorismo Sustentável no site da revista IstoÉ DINHEIRO

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