Artistas criam na ocupação do antigo hotel Cambridge de São Paulo

Na Avenida Nove de Julho, 216, centro de São Paulo, o edifício onde funcionava o hotel Cambridge tem uma porta vermelha de metal aparentemente fechada. “Pode-se contar a história inteira da nossa cidade simplesmente por esse microcosmo, tão amplo e complexo”, diz o escritor Julián Fuks, que se prepara para passar os meses de setembro, outubro e novembro imerso no local, ocupado desde 22 de novembro de 2012 por famílias sem teto – hoje, são cerca de 500 pessoas instaladas no prédio de 15 andares.

Entre os quatro finalistas do programa Rolex Mentor and Protégé Arts Initiative, que tem o escritor moçambicano Mia Couto como mentor para literatura, Julián Fuks está começando a escrever o romanceOs Olhos dos Outros. Como conta, “foi uma casualidade tremendamente pertinente” o convite que os curadores Juliana Caffé e Yudi Rafael lhe fizeram para participar do projeto Residência Artística Cambridge. “Minha proposta é estar ali, conhecer os moradores da ocupação e ouvir suas histórias.”

Por outro lado, a convivência com os moradores do Cambridge já é rotina, desde meados de março, para o artista visual Ícaro Lira – e até janeiro de 2017, o antigo hotel também será base para as investigações artísticas de Jaime Lauriano, Raphael Escobar e Virginia de Medeiros.

“Resistência e arte para mim são sinônimos”, diz a artista Virginia de Medeiros. Convidada pelos curadores Juliana Caffé e Yudi Rafael a participar da Residência Artística Cambridge, ela conta que pretende ficar os meses de novembro, dezembro e janeiro – o que inclui o réveillon – hospedada na ocupação para criar sua obra. “Cada projeto de arte é um espaço de aprendizagem, transformação, invenção de novas formas de prazer e convívio”, explica Virginia, que vai realizar um trabalho em vídeo em parceria com a Associação Cultural Videobrasil.

São 15 andares de escada até o quarto oferecido pelo Movimento Sem Teto do Centro (MSTC) – braço da Frente de Luta por Moradia (FLM) –, responsável pela ocupação do Cambridge (leia mais abaixo), para os criadores da residência artística no edifício. Virginia de Medeiros, que participou da 31.ª Bienal de São Paulo (2014) com uma videoinstalação sobre uma travesti, Simone, conta que está interessada em encontrar pessoas que “vivem em condições de privação” e também se deixar “afetar por outros códigos, valores, ética”. “Para o filósofo Henri Bergson, a simpatia é um método que nos permite passar para o interior das realidades, apreendê-las de dentro”, afirma a artista, que trabalha entre o documental e o ficcional.

 

A artista Virginia de Medeiros em cômodo do antigo hotel Cambridge. Foto: Alex Silva / Estadão.
 
“Morar em uma ocupação não é fácil porque você tem sua vida individualizada, mas também os afazeres do corredor, a assembleia e atos do movimento, e ter plena consciência de que aqui não é seu”, diz Carmen da Silva Ferreira, 55 anos, coordenadora do MSTC.

“Não sujar é mais fácil que limpar”, está escrito em uma placa logo na entrada do Cambridge, e os moradores (entre eles, 30 refugiados e imigrantes) vivem no local sob um “regulamento rígido”, conta Carmen. “Não aceitamos brigas, bebedeira, drogas, violência; e visita pode permanecer até as 22 horas”, explica a líder. As 169 famílias também contribuem, cada uma, com R$ 150 mensais para as despesas comunitárias. “Não queremos criar um Estado paralelo, queremos ser inseridos no Estado como cidadãos plenos”, diz Carmen.

Com “financiamento zero”, diz Juliana Caffé, e por meio de parcerias, o projeto Residência Artística Cambridge nasceu da experiência da curadora no edifício durante as filmagens, há dois anos, de Era o Hotel Cambridge, dirigido por sua tia, a cineasta Eliane Caffé. O filme, em processo de finalização – e que já recebeu o Prêmio da Industria Cine em Construção 28, do 63.º Festival Internacional de San Sebastián; o Hubert Bals Fund Suporte para Pós-Produção; e o Prêmio para Pós-Produção da região Île-de-France – é uma obra que mistura realidade e ficção. “Acho que tem muito a ver com a demanda do tema, de juntar movimento de luta de moradia com a questão da vinda dos refugiados”, diz Eliane Caffé.

A princípio, a diretora estava motivada em trabalhar com refugiados, mas a entrada no Cambridge abriu o projeto para atividades ainda muito mais amplas. “O filme foi gerido por um coletivo que permitiu transformar todo o edifício no set criativo da filmagem”, conta Carla Caffé, responsável pela direção de arte da obra, feita com os alunos da Escola da Cidade. Os poucos atores escalados, entre eles, José Dumont, contracenaram com os moradores da ocupação.

 
“A ousadia do experimento inspirou um novo modelo de atuação cinematográfica mais comprometido com os conflitos geopolíticos atuais”, opina Carla. “Claro que, às vezes, vira turismo social, mas esse trânsito entre as classes sociais, entre os grupos de artistas e moradores, é uma zona de conflito superpermeável”, diz Eliane.
 
A residência de Ícaro Lira, até junho, estimula, justamente, a convivência no Cambridge e a articulação de atividades públicas no local. “Minha atuação é mais como um ativador de pessoas para pensarmos ações que sejam um diálogo”, explica o artista, que vem trabalhando com movimentos sociais. Desde o dia 19, Ícaro Lira, que convidou o antropólogo inglês Alex Flynn para sua Frente de Trabalho, vem promovendo encontros públicos às terças-feiras, às 19h30, na biblioteca do Cambridge. Ele também prepara uma publicação em parceria com Lanchonete.org, edições Aurora/ Publication Studio São Paulo e Dulcineia Catadora.
 
“Em vez de uma exposição tradicional, são artistas trabalhando no contexto da ocupação, criando redes, vínculos”, resume o curador Yudi Rafael. “Acho que nosso maior interesse é entender a contradição do poder público-privado, que, mesmo com medidas sociais, desregula o zoneamento do centro, incentivando o processo de gentrificação e a proliferação de políticas higienistas”, dizem os artistas Jaime Lauriano e Raphael Escobar, os próximos residentes.

Luiz Kohara, do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos, faz palestra no Cambridge

Luiz Kohara, do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos, faz palestra no Cambridge. Foto: Alex Silva / Estadão.

Programação

 
Encontro: A arquiteta Ligia Nobre realizou a terça-feira, 3, às 19h30, a palestra Intersecções entre Práticas Artísticas e Outros Agenciamentos na Cidade na biblioteca da Ocupação Cambridge. Já ocorreram encontros com Luiz Kohara, secretário executivo do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos, e com Raquel Rolnik, que foi relatora da ONU para o Direito à Moradia Adequada. As falas serão disponibilizadas no Vimeo e a programação pode ser acessada em www.facebook.com/res.artistica
 
Cineclube: Está programada para esta sexta-feira, 6, às 19h30, a exibição do filme O Invasor, de Beto Brant, no Cambridge. Após a sessão, será realizada conversa com o diretor 
 
Prédio pertence à Companhia de Habitação de SP 
 
A assessoria de imprensa da Secretaria Municipal de Habitação da Prefeitura de São Paulo explica que o edifício do antigo hotel Cambridge pertence à Companhia Metropolitana de Habitação de São Paulo e foi desapropriado. O prédio foi ocupado em 22 de novembro de 2012 pela Frente de Luta por Moradia e continua nesta situação. Atualmente, 169 famílias vivem no local, segundo o Movimento Sem Teto do Centro. Segundo a Secretaria de Habitação, o prédio se encontra em fase de análise para recurso do edital Minha Casa Minha Vida Entidades, chamamento 2, ligado ao Ministério das Cidades.

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Camila Molina no Caderno Cultura do Estadão.


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