Cinema na Quinta do Sol


“A menina parece um palmito!”, exclama o espectador adolescente no escurinho do cinema, diante da primeira aparição de uma personagem ruiva, muito pálida, no filme brasileiro O Escaravelho do Diabo, de Carlo Milani.

Não parece uma frase que ouviríamos num cinema da região central de São Paulo. De fato, estamos a mais de 20 quilômetros da Praça da Sé, na Vila Císper, bairro de origem operária (Císper vem de Companhia Industrial São Paulo e Rio) situado no distrito de Ermelino Matarazzo, na zona leste da capital paulista, à beira do Parque Ecológico do Tietê, perto da divisa com o município de Guarulhos.

No dia 20 de abril de 2016, entrou em funcionamento com gala, a primeira sala de cinema do CEU (Centro Educacional Unificado) Quinta do Sol, unidade municipal de ensino inaugurada em abril de 2008.

 

Na sessão inaugural, um público ruidoso de adolescentes e crianças tem direito a piano, pipoca, sanduíche, refrigerante, música de Luiz Gonzaga cantada e tocada ao vivo, filme de detetive inspirado na literatura infanto-juvenil de Lúcia Machado de Almeida, projeção de primeira, som excelente e discursos de autoridades.

 
“Quem vem ao cinema não quer blábláblá”, tenta contemporizar Maria do Rosário Ramalho, secretária municipal de Cultura da gestão Fernando Haddad (hoje o prefeito não está presente, nem o secretário de Educação, Gabriel Chalita). “Então vai logo”, reage, sem cerimônia, uma adolescente na plateia.
 
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O espaço segue a vocação dos CEUs e não se destina exclusivamente ao cinema. Como explica o gestor da unidade, o alagoano radicado paulistano Uoston Barros de Sá, há pouco tempo esteve fazendo show aqui a cantora e compositora paulistana Maria Gadú.

Uoston se emociona quando conta que Gadú, ao chegar e encontrar mais de mil candidatos a espectadores esperando pelas cerca de 400 vagas no teatro-cinema-etc., decidiu fazer duas sessões em vez de uma, sem modificar o valor do cachê combinado.

A inauguração da sala de exibição no Quinta do Sol se deve à ação da Spcine, escritório municipal de desenvolvimento, financiamento e implementação de programas e políticas para cinema, TV, games e web. A empresa, vinculada à Secretaria Municipal de Cultura, pretende instalar 20 salas como essa pelas periferias da cidade até o final de maio.

A sala do Quinta do Sol é a quarta a ser inaugurada, após as dos CEUs de Jaçanã, Heliópolis e Butantã. As sessões do circuito, gratuitas e abertas a quaisquer espectadores, acontecem às quartas-feiras, quintas-feiras e domingos.

O diretor-presidente da Spcine, Alfredo Manevy, busca um diálogo mais próximo e direto com a plateia. Pergunta quem aqui costuma ir ao cinema em shopping center. Muitos levantam a mão. Pergunta quem vai ao shopping mais de duas vezes por ano. Menos adolescentes levantam a mão. Pergunta quem quer ter cinema perto de casa. Praticamente todo mundo levanta a mão.

Manevy arranca aplausos da juventude quando menciona que o Quinta do Sol projetará, em breve, um filme da moda em que dois famosos super-heróis norte-americanos contracenam. E chega quase de imediato à mensagem central do discurso:

“O que quero pedir para vocês, em nome da Prefeitura e da Spcine, é que cuidem da sala, espalhem a notícia, falem para seus pais, primos e amigos que a gente tem uma sala de cinema aqui no CEU Quinta do Sol e que esse cinema é gratuito, para todas as pessoas, idades e gostos. Cuidem bastante da sala, divulguem, participem”.

Em conversa com a reportagem, Manevy traça os objetivos fundamentais do circuito SP Cine nas periferias. “São Paulo tem no mínimo 30% das pessoas de baixa renda na população, um apartheid óbvio num grande polo econômico e cultural, que se orgulha de ser cosmopolita. A ideia do projeto é criar um circuito público de salas, para primeiro incluir as pessoas na experiência de ir ao cinema. Todo mundo aqui já viu filme: na TV, no celular, na internet. Mas a experiência da sala escura, da convivência social num espaço fechado com uma tela grande, provavelmente não tiveram ou tiveram poucas vezes.”

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O segundo ponto explica, em parte, o painel de primeiros cartazes no Quinta do Sol, com desenho e aventura norte-americanos, O Escaravelho do Diabo e a condensação cinematográfica da telenovela bíblica Os Dez Mandamentos, da TV Record (em contraste com os 15% destinados pelo mercado comercial ao cinema nacional, o Circuito SP Cine destinará no mínimo 40% da programação para filmes brasileiros):

“O segundo objetivo é gerar tela para uma programação de qualidade que o circuito comercial não oferece, uma programação mais equilibrada. Temos que trazer algumas coisas que estão no imaginário, que são as mais demandadas num primeiro momento, mas colocando, por exemplo, O Escaravelho do Diabo, que é nacional, ou Sinfonia da Necrópole, da Juliana Rojas, um filme independente autoral radical. A gente tem que tem que ter uma inteligência de programação”.

Manevy provoca o senso comum de quem está habituado a olhar a cultura sempre a partir do centro: “Um terceiro objetivo é lidar com a demanda de uma elite cultural da periferia, que é poderosíssima, responsável por uma produção cultural top hoje, com hip-hop, saraus… Eles querem Andrei Tarkovsky, David Lynch, mas temos que calibrar, trabalhar muito com público infantil, ampliar repertório”.

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Na linha de oferecer melhores opções para camadas sociais geralmente relegadas a planos subalternos, o gestor público ressalta o cuidado de levar às periferias uma agenda sincronizada com as do dito centro. “Queremos trabalhar sempre com lançamentos, para não dar ideia de que o cinema deles é de catálogo, de filmes antigos, o que seria uma maneira de dizer que é B, de segunda linha. O menino de comunidade tem de poder dizer que tem aqui na comunidade o filme que o garoto de classe média tem no shopping.”

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Na sala de exibição, o público ruidoso se comporta de modo irreverente, mas nunca de ouvidos fechados para os sons ao redor. Faz-se um silêncio quase completo quando, em seu discurso, a coordenadora de difusão da Spcine, Ana Louback, sugere que quem que já leu o livro assista ao Escaravelho pensando em como o cineasta fez a transposição da forma escrita para a audiovisual, porque “talvez um dia vocês estejam aqui contando as histórias de vocês numa tela de cinema também”.

 
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A coprodução da Globo Filmes é fruída com intensidade. A uma cena de maior impacto, seguem-se alguns minutos de dispersão. O espectador irreverente chama a personagem branquela de “palmito”. A uma cena em que aparece uma tela de TV ligada, alguém reage prontamente ao logotipo no canto direito inferior: “É a Globo”.

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O final do filme é acompanhado por entusiasmada salva de palmas das meninas e dos meninos da Vila Císper. A primeira sessão termina ao entardecer, enquanto as peruas escolares estacionam à porta do CEU Quinta do Sol para levar os estudantes de volta para casa.

***
 é editor de FAROFAFÁ, jornalista e crítico musical desde 1995, autor de “Tropicalismo – Decadência Bonita do Samba” (Boitempo, 2000) e “Como Dois e Dois São Cinco – Roberto Carlos (& Erasmo & Wanderléa) – Boitempo, 2004. *Fotos: Pedro Alexandre Sanches.

 
 

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