Do Grajaú à Cantareira: durante 3 dias, 10 pessoas cruzaram São Paulo a pé

O carro se aproxima rapidamente e o motorista buzina sem parar. Na esquina, o som chega antes do veículo, onde, no banco do passageiro, um homem branco, pálido e de cabelos grisalhos tem a boca aberta e torta, os olhos revirados. Uma mulher está com metade do corpo apoiado na janela de trás e gesticula para afastar os pedestres que iriam cruzar a rua.

“É para cá, é para cá”, grita ao motorista. Ela é morena e tem seios grandes, que saltam no decote da blusa de alcinha. Se segura quando o carro faz a curva. É a esquina do Hospital do Mandaqui, na zona norte.

A cena durou cinco segundos. Quem estava na fila do semáforo ou no ônibus vizinho talvez nem a tenha visto. Mas aquela imagem ficou na memória do grupo que, de mochilão nas costas, esperava o sinal abrir.

Durante três dias, em novembro, essas dez pessoas cruzaram a capital paulista a pé, de sul a norte. A sãopaulo acompanhou a expedição e presenciou episódios, como o narrado acima, que aconteceram pelo caminho. Andar pela metrópole é como ver a vida em câmara lenta, já que não se segue o ritmo dos carros. É estar mais devagar do que a cidade.

O trajeto foi de 65 km, do Grajaú (zona sul) à serra da Cantareira (norte). Chamada Travessia Ponto-à-Ponta, a caminhada foi organizada pelo arquiteto e artista plástico Renato Hofer.

 

 

Contrastes

Cinema no sul

Depois de um café na Cinemateca, na Vila Clementino, o professor de literatura Marco Roberto, 38,
e a psicóloga Simone Munhoz, 50, iriam assistir a um filme espanhol. 
Para Roberto, o melhor da cidade são os cinemas, museus e teatros.
“São Paulo é esse laboratório cultural que nos permite compreender o mundo em suas diferentes perspectivas.”

***

São Paulo é várias em uma. É cidade pequena onde comadres se cumprimentam no portão e o vizinho vende geladinho a R$ 0,75. Tem cara de litoral, com deques, estacionamentos de barcos e crianças que brincam na água. E pode ser chique, com casarões murados e festas na piscina, ou pobre, em barracos amontados num vale.

A travessia começou pelo interior. A partida foi às 8h de 20 de novembro, feriado, na estação Grajaú da CPTM, ponto final do transporte por trilhos na capital. A chuva que caíra durante toda a noite havia cessado e o grupo começou a caminhada nas ruas vazias do bairro de classe baixa, onde só mercadinhos estavam abertos. Ao sair de casa, uma senhora chamou a outra, que passava na calçada: “Tudo bem, querida?”. No sobe e desce dos morros, só um papagaio falava.

O clima litorâneo apareceu próximo à Guarapiranga (também no sul), no antigo Iate Clube Santa Paula, onde a elite paulistana se reunia para velejar e nadar na piscina, hoje vazia. Até 17 mil pessoas aproveitavam shows num enorme salão de bailes. O prédio, usado como depósito, está esquecido.

Às margens da água, um homem colocava uma minhoca no anzol para atrair piranhas e lambaris. Assistente administrativo, Márcio Saraiva, 40, costuma soltar os peixes. Quando não, come-os “fritinhos, com birita para acompanhar”. Ao lado dele, meninos molhavam os pés na Guarapiranga.

Ao fundo da pescaria, um conjunto residencial despontava na paisagem. Era o começo de uma mudança de cenário que acompanharia os caminhantes por boa parte do percurso. Em Santo Amaro, Campo Belo, Vila Mariana, Cambuci, Pari, Carandiru, Santana e Jardim Peri impera o cimento, em forma de casas ou prédios, até a floresta chegar, no extremo norte.

O que diferencia as zonas urbanas são as classes sociais que as povoam. “Aqui cabem cinco lotes do Grajaú”, disse o coordenador da expedição, Renato Hofer, ao ver um terreno no Alto da Boa Vista, área rica da zona sul.

No bairro pobre, os espaços das árvores foram tomados por sobrados pequenos e em mau estado. No Alto da Boa Vista, o verde abundante, os casarões refinados e as mulheres de roupa esportiva, passeando com goldens retrievers, faziam o visitante se sentir na Beverly Hills paulistana.

Turistas locais
 

Galinhada no centro

No coração do Canindé, ao lado do estádio da Portuguesa, uma placa de Raimundo Soares em tamanho real anuncia que a
Galinhada do Bahia está próxima. Há 40 anos na cidade, Soares é dono do restaurante que fica numa pequena vila.
Desde que chegou, vindo do interior da Bahia, mora ali. “É tranquilo, bom. Dá para curtir um forrozinho saudável.”

***

No mesmo Alto da Boa Vista, a expedição causava estranhamento por andar pelo concreto com roupa de trekking, às 15h de um feriado ensolarado.

Ao passar pelas calçadas, dava para ouvir os mergulhos nas piscinas e risadas dos moradores. Com calor, participantes da travessia se intrometeram em um churrasco, numa casa de muros baixos, para pedir água.

Um jovem loiro pareceu intrigado com o pedido. “Ah, claro!”, disse enquanto entregava as garrafas para um amigo encher. Tocava “Palco”, de Gilberto Gil:

–“Vocês estudam por aqui?”

–“Não, estamos passando só.”

–“São estrangeiras?”

– “Não, brasileiras.”

–“Mas de que Estado?”

–“Daqui de São Paulo mesmo. Estamos cruzando a cidade a pé.”

–“Para conhecer mais”¦”

– “Hm, legal. Interessante.” O amigo voltou e a viagem seguiu.

Perguntas como essas e olhares curiosos apareceram durante toda a caminhada. No Pari (centro), em uma rua sem saída, dois meninos que jogavam bola não paravam de encarar. “Ei, quem são vocês?”, repetiam.

As câmeras fotográficas também provocavam a curiosidade alheia. A questão do jovem loiro fez sentido –vocês são turistas?– quando os participantes se reuniram ao redor de um córrego do Grajaú para fotografá-lo. “Peraí, tenho que tirar uma foto.”

Mais a frente, o italiano Filippo Meucci, que integrava a expedição, sacou a Nikon analógica para fazer imagens do Tietê. Enquanto isso, motoristas viravam a cabeça para ver melhor a cena. Do Tietê? “A situação dos rios me toca. Eles viraram a parte ruim da cidade. Na Europa, é a parte nobre. No norte da Itália dá até para nadar.”

Foi para ver São Paulo do jeito como vê a Itália, onde esteve mais de dez vezes, que a designer e arquiteta Aya Nakai, 42, decidiu fazer a travessia. “Para saber se consigo ter um olhar de turista e me encantar com as coisas como em qualquer outra cidade.”

A expedição funcionou mesmo como uma viagem. Apesar da rota passar ao lado e dentro de estações de metrô, o grupo continuou a pé. A sensação era a de estar em uma trilha na floresta, onde não há mais opções a não ser continuar caminhando.

À noite, as pousadas foram nas casas de moradores dos bairros. Primeiro, na Vila Mariana (zona sul). Depois, no Jardim Peri (zona norte). O esquema foi parecido ao de um acampamento, onde uns usaram barracas e outros, sacos de dormir.

Mas ninguém havia saído da cidade. A ficha só caiu no retorno, feito de transporte público. Se a ida demorou 72 horas, a volta foi feita em 90 minutos. Cada luz que se acendia no painel do metrô eram quilômetros de pernada. “Como é rápido”, disseram alguns.

Cidade do carro
 

Verde no norte

Quando Aurelina Bezerra, 66, se mudou para o Jardim Peri, as árvores da serra da Cantareira ficavam pertinho de sua casa.
“Abria a janela, olhava aquele verdão e me sentia muito bem, agora nem tanto.” Isso porque construções foram afastando Aurelina e o verde.
O que a consola são os pés de manga e limão que cultiva em vasos no quintal. “Aqui é o meu templo.”

***
 

Mais do que ato turístico, caminhar pela metrópole é um ato político, afirma o idealizador da expedição, Renato Hofer. Para ele, andar vai contra ideias predominantes, como a de de que você precisa ter um carro para viver.

“Essa é a cidade do automóvel. As pessoas fazem duas quadras de carro, vão à padaria de carro. Isso está muito inserido no universo delas. Vivemos na cidade do muro, do medo.”

Em trechos do caminho, a ausência de pedestres tornava o ambiente meio assustador. Nos arredores das grandes vias, como a Radial Leste, e debaixo dos viadutos, era raro cruzar com outras pessoas. As calçadas também não facilitavam a vida dos integrantes da expedição. Estreitas, obrigavam parte deles a andar pela rua.

Ao lado da estação Brás (centro), apesar do ir e vir dos trens da CPTM, a impressão era de que o lugar estava abandonado. Só um mendigo dormia por ali. A decisão foi conjunta: era melhor apressar o passo e ir embora.

“Pode ser algo banal, mas o único modo de ter uma cidade segura é haver gente caminhando pela rua”, escreve o italiano Francesco Careri no posfácio da edição brasileira de “Walkscapes”, lançado no país há dois anos. Careri, que esteve ma última Bienal de Arquitetura de São Paulo, em 2013, fala sobre como circular a pé por aqui é diferente de fazer trajetos na Europa.

“Na América do Sul, caminhar significa enfrentar muitos medos: medo da cidade, medo do espaço público, medo de infringir as regras (…) e medo dos outros cidadãos, quase sempre percebidos como inimigos potenciais. Simplesmente, o caminhar dá medo, e, por isso, não se caminha mais (…).”

Nos anos 1990, Careri fundou o Stalker, projeto que propunha percorrer andando os limites de cidades europeias, buscando conhecer espaços que não estavam nos guias turísticos.

Em “Walkscapes”, ele conta que esse tipo de atividade não é novo. Começou com os dadaístas nos anos 1920 e foi usado por outras vanguardas artísticas. Caminhar tornou-se uma forma de fazer arte. Mas, também, de entender a cidade. O autor fala do prazer de “perder-se para conhecer”.

Os integrantes da travessia concordam. Para eles, não há melhor maneira de compreender São Paulo. Renato Hofer diz que andar é uma forma intensa de viver o território. Já o urbanista Roberto Fontes fala de “construir uma imagem” da metrópole na cabeça.

Para o italiano Filippo Meucci, que fotografou o Tietê, caminhar é ver de camarote a vida acontecendo. “Há tempo para olhar as pessoas, perceber o que fazem nas lojas, no cantinho da praça, o que falam entre si. Teve pessoas brigando, tomando alcoólicos no buteco…”

Um comerciante oferecendo perfumes em bandejas de isopor, africanos vendendo camisetas de futebol, velhinhas comprando véus brancos na frente da igreja, um cavalo olhando –de trás do muro– o movimento da rua, macacos brincando nas árvores, crianças brincando no chão, meninos brincando de lutar, homens brigando no bar, pinga no boteco, galinhada no restaurante de uma vila onde não passa ninguém, a avenida onde não para ninguém, o silêncio, o barulho. A vida, todos os dias, se misturando nas ruas.

Assista o vídeo: https://youtu.be/vm9NlPJMOrM

***
Reportagem: Ingrid Fagundez / Design e desenvolvimento: Pilker e Ricardo Ampudia / Fotos e vídeos: Giovanni Bello. Revista São Paulo.

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