O ‘Imperador do Universo’ e os modismos da sociedade de consumo

Monique Vanni, consultora do São Paulo São, explica a transformação que a popularização do açai trouxe para as comunidades ribeirinhas, como a Boa Esperança. Uma colaboração pra lá de especial para o projeto “Esse Rio É Minha Rua” do Fotógrafo Rogério Assis. Link: http://on.fb.me/1aVLwub

“Às vezes, os caprichos e modismos da sociedade de consumo, que tanto estrago fazem por aí, acabam gerando ciclos virtuosos. É o caso do açaí, a frutinha da Amazônia que nos últimos quinze anos ganhou o mundo. Está na barraquinha carioca, servido gelado na tigela, com guaraná e granola. Está nos sucos de caixinha de nossas gôndolas, mas também está nos cosméticos americanos, e nos suplementos coreanos. Se aqui é febre, no mercado americano já se estima que movimente US$ 400 milhões ao ano. Sabemos que vem da Amazônia, e que é riquíssimo em nutrientes, principalmente os tão desejados polifenóis antioxidantes. Mas pouco sabemos da sua origem, qual caminho faz para chegar à nossa mesa. Pois o ouro negro do Pará, como é chamado por lá, é o protagonista de uma história fascinante de transformação social no coração da Amazônia, viajando em barquinhos pelos tortuosos rios e igarapés, numa logística dantesca, tocando e mudando muitas vidas pelo caminho, até chegar à sua mesa.

Para o imaginário coletivo, a Amazônia é uma luxuriante floresta equatorial, composta de fauna e flora de valor inestimável, o pulmão do mundo, e o palco de uma sanguinária batalha contra o desmatamento. Já vimos também esparsas imagens de índios, detentores de culturas milenares, guardiões da floresta. Mas o ribeirinho é personagem quase invisível nessa história, o caboclo mestiço, subsistindo nas várzeas dos rios, vivendo em pequenas comunidades, em relativo isolamento, pescando, fazendo sua rocinha, e tirando o seu açaí. Pois estima-se que são aproximadamente sete milhões, espalhados por toda a Amazônia brasileira. Para eles, o boom do açaí foi uma revolução.

Muitas dessas populações foram chegando aos poucos, no começo do século XX, do nordeste do país, se misturando com a população local, em pleno ciclo da borracha. Vieram para ser empregados dos patrões latifundiários, foram se instalando nas beiras de rio, vivendo em condições precárias, sem nenhuma autonomia. Quando o ciclo da borracha, bem, se esborrachou, veio a madeira, o gado. O ribeirinho foi se adaptando, fazendo serviços para o patrão, e mantendo a sua rocinha, tirando seu açaí, sempre à beira da miséria, excluído e esquecido.

O nutritivo açaí salva, há gerações, o ribeirinho da fome, como já salvou os índios antes deles. É o Maná da floresta**. A euterpes eularia, palmeira prima da Jussara, é presente em larga escala em todo o estuário, nas áreas de várzea, onde vive essa população. O suco extraído de seus frutos, misturado com a farinha do roçado, o peixe do rio, formam a base da alimentação paraense.

(** A lenda do açaí é reveladora da importância histórica do açaí no combate à fome. A índia Iaçã, filha do cacique que liderava a numerosa tribo que antes ocupava a região em que hoje está situada Belém, deu a luz à uma linda menina. Mas como havia muita fome na região, a menina foi sacrificada, para reduzir a população. Iaçã chorou, chorou, chorou, e rezou para Tupã, pedindo que ele lhe apontasse outra maneira de salvar seu povo, sem tamanho sofrimento. Sua filha lhe apareceu numa visão, e a levou até uma palmeira. Iaçã chorou, chorou, aos pés da palmeira, até desfalecer. Foi encontrada no dia seguinte, aos pés da palmeira, carregada de frutinhos negros, o açaí, que veio a salvar aquele povo da fome.)

Não fosse a vinda da família Gracie para o Rio de Janeiro na década de 30, talvez lá tivesse ficado o humilde açaí. Mas Hélio, o grande pai do Jiu Jitsu brasileiro, trouxe com ele a frutinha, parte de sua famosa dieta Gracie, segredo do seu vigor de vencedor. Primeiro vinha de avião, depois foi sendo congelado em saquinhos de polpa, foi sendo misturado, foi virando febre nas academias, nas barraquinhas de praia, passou nas novelas da Globo, e explodiu. Explodiu a demanda, explodiu o preço, e o ribeirinho de repente, em dez anos, mudou de vida.

Hoje são produzidas mais de trezentas mil toneladas por ano de açaí, que ainda é tirado pelo ribeirinho, o peconheiro que sobe na palmeira de madrugada, vivendo espalhado pela mata, em seus pequenos sítios. Não existem grandes plantações, como é o caso da laranja, ou da soja. Todo esse açaí é extraído manualmente, de maneira tradicional e pulverizada. O açaí é passado de barco em barco, de milhares de pequenas voadeiras para grande embarcações geleiras, em paneiros de buriti, nos meandros e canais do Pará, imenso labirinto de águas. É negociado em grandes bolsas de valores ao ar livre, no meio dos rios, na beira dos igarapés, nas pequenas cidades, movimentando uma nova teia de comércio, irrigando essas regiões antes esquecidas de dinheiro vivo.

Hoje a casa do caboclo em Curralinho, no Marajó, tem lá seu gerador, sua televisão. Ele controla o preço do açaí lá na feira de Belém pelo celular, e decide se sobe no pé para tirar ali suas 10 rasas por dia, se vende na feira, ou passa para o atravessador vender para a fábrica de polpa. No auge da safra, tira uns cinquenta reais, quando a oferta cai e os preços sobem, tira até duzentos. Pela primeira vez na história, não depende mais de patrão. É independente, garante sozinho seu sustento. Passou ali também a Secretaria do Patrimônio da União, que lhe deu seu título de posse de terra e o inclui nos programas socias do governo. Com isso cimentou-se de vez sua identidade, e ele virou cidadão. Se para nós muitas vezes ainda é invisível, ali, no interior do Pará, vive hoje com uma nova dignidade, tem seu meio de vida tradicional valorizado, e se sente pela primeira vez parte da sociedade.

Aos poucos, essa melhoria está gerando profundas transformações na fibra social paraense. O êxodo rural está se invertendo em diversas localidades, as tradicionais e arraigadas relações patriarcais se desfazendo. As crianças estão na escola, vão de barco escolar ou de rabeta (um barquinho com motor de hélice), e muitas estão terminando o segundo grau. Hoje os jovens ajudam os pais a planejar a roça, a fazer as contas, pensam em como organizar as comunidades e defender seus direitos. Aprenderam também que a floresta é fonte de riqueza em pé, não dependem mais do patrão fazendeiro, das madeireiras. Falta muito chão pela frente, as condições ainda são muitas vezes precárias, não há saneamento, faltam planos de manejo que norteiem a gestão desses vastos territórios, falta assistência técnica, e, principalmente, na entressafra, os cintos se apertam. O alcoolismo é um problema grave, as questões de gênero permanecem complexas, dentre outros muitos desafios. Mas hoje, com a ajuda do açaí que você tomou depois da corrida e da musculação na academia, o ribeirinho, lá em Curralinho, depois de um longo dia bravando as intempéries dessa Amazônia selvagem e irracível, pode deitar na sua rede e saber que é dono de seu destino.”

Monique Vanni, M.Sc pelo King’s College, Doutoranda pela London School of Economics and Political Science.

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