Italiana, brasileira, internacionalista

Era assumidamente insegura, ligeiramente paranoica e completa e absolutamente iluminada.

Chegou ao Brasil em 1969, anos depois que os Piozzi, seus pais e o irmão vieram para, segundo suas palavras, exaustivamente repetidas ao longo do tempo, “Fazer a América”.

Nascida em 1949, desembarcou no porto de Santos com quase vinte anos de idade.

Dizia que quando recebeu a notícia de que se mudaria para os trópicos, seus amigos italianos, ignorantes quanto à geografia brasileira, diziam que ela iria encontrar um país de características semi-desérticas e, portanto, seria bom aproveitar as maravilhas da vegetação europeia pois o que a esperava por aqui seria uma forma mais branda de Saara.

Para sua surpresa, uma semana depois de iniciar a viagem por mar em direção ao novo mundo, tal qual fizera seu conterrâneo, Colombo, 477 anos antes, Patrizia pergunta para um tripulante o que era aquela longa faixa verde distante, que surgira no dia anterior e parecia acompanhar o navio.

O tripulante teria respondido: “É o litoral do Brasil!”

Esse foi o primeiro contato de Patrizia com a terra que estaria sob seus pés nas quase cinco décadas seguintes de sua existência, precocemente encerrada aos sessenta e seis anos.

Munida de imensa capacidade intelectual, em 1973, já havia recebido sua graduação em Filosofia pela USP e, à partir daí, iniciou uma muito bem sucedida carreira acadêmica, que a conduziu da Unesp, de Marília, até a Unicamp, onde um câncer interrompeu a trajetória dessa militante da inteligência e da civilidade.

Filha legítima dos anos 60, Patrizia trazia consigo os melhores valores gerados à época, como o feminismo, 

o direito a insubordinação e a luta por uma sociedade igualitária. Apesar de trotskista, seu apreço juvenil pelo anarquismo se devia mais a seu espírito livre, e não necessariamente libertário, avesso à tirania implícita ao centralismo democrático que oprime opiniões independentes.

De alguma forma, Patrizia repetia Trotsky em sua aversão inicial ao Partido Bolchevique. 

Mas havia um outro motivo para que jamais tenha integrado as fileiras de qualquer organização de esquerda, clandestina ou não.

Como estrangeira que nunca se naturalizou, se flagrada em alguma atividade subversiva, além de presa e processada pela Lei de Segurança Nacional, seria, inapelavelmente, expulsa do país.

Afinal, estamos falando de um Brasil sob regime ditatorial, aquele dos generais-presidentes, da década do milagre, da censura, da tortura, dos anos 70.

Generosa, Patrizia não se furtava a colocar seus inesgotáveis recursos culturais à disposição de quem precisasse de educação, de quem quisesse aprender, de quem desejasse superar os obstáculos herdados por uma origem simples através do saber.

Bastava existir alguns bons maços de “Minister” para ela exercer seu maior talento, provar que educar é entreter.

Mas foi no período extra-curricular que Patrizia demonstrava ao que viera.

Definitivamente, inabilitada para as tarefas domésticas, Patrizia possuía a já mencionada vocação nata para ensinar, por que dispunha de muitas histórias para contar.

E toda e qualquer história contada por um italiano, inevitavelmente, adquire tons de tragicomédia, como nos melhores filmes de Ettore Scola.

Moradora permanente da Pompeia, bairro em São Paulo que abriga o Parque Antártica e a Mancha Verde, as festas na casa de seus pais ofereciam aos convidados mais do que iguarias toscanas, milanesas ou venezianas.

Um frequentador assíduo dessas reuniões familiares, que no início dos anos 80, atraiam mais do que parentes, Seu Antonio, um nativo de Bari, fascinava espectadores involuntários com suas desventuras durante a guerra.

Ao contrário de um dos avós de Patrizia, que participara da “Marcha Sobre Roma”, em 1922, Seu Antonio nunca havia sido fascista, mas apenas um jovem que em idade de alistamento teve o azar de ser convocado para a invasão da Abissínia, em 1935, pelo Exército do Duce.

Difícil saber se a frase seguinte se deve à índole zombeteira italiana, ou se Mussolini realmente a proferiu quando, diante das tropas perfiladas, prontas para a ridícula incursão militar na África, teria dito aos seus soldados: “Italianos, armemo-nos e parti-vos!” 

Em tom de qualquer comédia estrelada por “Totó”, Seu Antonio contava, com algum divertido pesar, que passara oito anos no Exército Italiano, de 1935 a 1943, quando caiu Mussolini.

Infelizmente, caiu também o Seu Antonio, nas mãos dos alemães que, preventivamente, evitavam que os antigos sócios fundadores do Eixo, passassem para o lado dos aliados ou para a resistência “partigiani”.

E assim, o Seu Antonio seria promovido a prisioneiro de guerra dos nazistas.

Durante dois anos não tomou banho e só comeu carne uma única vez, quando encontraram pelo caminho, pois o campo em que estava encerrado era móvel, um cavalo alvejado por um caça norte-americano P-51, o mesmo que Spielberg reverenciou em “O Império do Sol” e em “O Resgate do Soldado Ryan”.

Fumar era outro tema que aproximava Patrizia de Seu Antonio, que dizia nunca haver experimentado um cigarro antes de ser libertado pelos americanos.

Quando os alemães, que o mantinham cativo, renderam-se a primeira providência tomada pelos libertadores do campo foi tratar dos prisioneiros com cuidados médicos, alimentação e banhos prolongados.

Em suas próprias palavras, para livrar-se dos piolhos e das feridas que cobriam suas pernas e costas, provocadas pela infestação dos insetos, foi necessária uma semana inteira de banhos medicinais, com muita esfregação e aplicação de produtos usados na desinfecção de banheiros públicos. 

Mais do que os chocolates, foram os cigarros distribuídos pelos GI’s que determinaram o imenso apreço que desenvolveu pelos Estados Unidos.

Fumando, diária e ininterruptamente, à partir de 1945, Seu Antonio desenvolveu também um enfisema.

Trinta e oito anos mais tarde, em 1983, um médico no Brasil deu-lhe a má notícia: “Seu Antonio, se o senhor não para de fumar o senhor vai morrer”.

O idoso italiano, literalmente velho de guerra, devolveu: “O senhor está dizendo o que, Doutor, que se eu parar de fumar eu não vou morrer?!”

Como a esposa de Seu Antonio não possuía todo esse humor e testemunhou o diagnóstico grave apresentado pelo médico, ela encerrou a consulta garantindo ao doutor que seu esposo tinha encerrado seus dias de fumante naquele momento.

Duas semanas depois, Seu Antonio dá entrada em um hospital com uma preocupante taquicardia que podia indicar um infarto em andamento.

Por acaso, seu médico, o mesmo que o proibiu de fumar, estava dando plantão naquele PS.

“Há quanto tempo o senhor está com essas palpitações, Seu Antonio?”, perguntou o médico.

“Faz uns quinze dias, Doutor”, respondeu Seu Antonio.

“E teve algum momento em que os batimentos se normalizaram?”, perguntou, outra vez, o médico aparentando preocupação.

“O senhor não vai brigar comigo, Doutor, mas domingo passado eu fumei um cigarrinho escondido e o coração voltou a bater mais devagar”, esclareceu Seu Antonio.

“Pois então, vou prescrever para o senhor um tratamento para resolver esse problema”, disse o médico.

“E que tratamento é esse, Doutor?”, indagou, todo curioso, Seu Antonio.

“Volte a fumar, imediatamente, Seu Antonio”.

Patrizia interrompia suas pesquisas apenas para ouvir esses “causos” do Seu Antonio, para comer e viajar.

A cada dois anos, costumava visitar uma grande amiga, na Itália, Giuliana.

Contudo, seu encanto com a terra natal, aquela que o cinema político italiano idealizara, foi se perdendo à medida em que o projeto do “Compromisso Histórico” deu lugar ao país da “Operação Mãos Limpas” e este ao de Berlusconi.

Foi ao México, onde está o túmulo de Trotsky e à Cuba, onde agora está o de Fidel.

Mas Patrizia já havia dado sua contribuição à quaisquer causas panfletárias e, ultimamente interessava-se em garantir seu bem-estar sem, contudo, prejudicar o dos demais.

Depois da aposentadoria compulsória por razões de saúde, Patrizia continuou escrevendo, alimentando sua bem fornida obra que pode ser encontrada nas livrarias e no Google, mas sempre com tempo para falar de sua outra paixão e orgulho, os sobrinhos Roberta e Enrico, filhos de seu único irmão, Ugo.

Patrizia não teve tempo de redigir o último capítulo.

Em 2015, todos aqueles maços de “Minister” fumados durante tanto tempo, acabaram por nos privar dela que teve um epílogo semelhante ao do “Cowboy de Marlboro”.

Assim como era saudosa de sua Itália de ontem, provavelmente, não teria gostado do Brasil de hoje.

Mas uma coisa é certa: o planeta seria melhor com ela dentro dele.

***
Zoca Moraes, é redator de propaganda, roteirista e contador de histórias. Conselheiro do São Paulo São, assina a coluna “Chegados“ toda semana.

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