‘Mobilidade urbana e a perspectiva das mulheres‘: os modos de empoderamento feminino

“O medo nos afasta do transporte coletivo”, afirma Ana Carolina Nunes, do SampaPé. Essa é uma realidade presente no dia a dia de milhares de mulheres, e reverter esse quadro começa por compreender as justificativas equivocadas para os casos de violência no transporte. “Primeiro, o problema não é a lotação dos veículos – estudos mostram que a maior parte dos casos de assédio acontece em veículos quase vazios; quem cala não consente – as mulheres não se sentem seguras ou à vontade para denunciar os abusos; por fim, abusadores não são “loucos” descontrolados – são homens que cresceram em uma cultura patriarcal e aprenderam que o corpo da mulher é público”, explicou Ana.

Em São Paulo, 55% das pessoas que usam o metrô são mulheres. O transporte coletivo é um instrumento que pode garantir – ou não – o acesso das mulheres às oportunidades de trabalho e lazer e aos serviços urbanos de que necessitam. Um sistema mal planejado e que não considere determinadas necessidades específicas das mulheres – como pontos de parada flexíveis à noite, a fim de evitar o risco de assaltos e estupros – limita sua autonomia social e financeira. Para as gestantes, por exemplo, freadas, trancos, empurrões e quedas são riscos impostos pelos veículos e que não são considerados no processo de planejamento, ainda majoritariamente realizado por homens. “O transporte coletivo foi planejado por homens para atender as necessidades de deslocamento de outros homens”, atestou Gabriela Vuolo, do Cidade dos Sonhos. “A qualidade vem quando são consideradas as necessidades de todos”, completou.

A falta de qualidade reflete-se na satisfação dos usuários com o transporte coletivo. Análises dos resultados das pesquisas de satisfação do programa QualiÔnibus, desenvolvido pelo WRI Brasil Cidades Sustentáveis, mostram que, de maneira geral, as mulheres apresentam índices menores de satisfação do que os homens em relação ao transporte coletivo. Por conta da falta de qualidade, os ônibus estão perdendo 3 milhões de passageiros por dia, conforme dados da NTU. Cristina Albuquerque, coordenadora de mobilidade urbana do WRI Brasil Cidades Sustentáveis, acredita que é possível mudar essa tendência carrocêntrica: “O primeiro passo é mudar o desenho das nossas vias, que ainda destina a maior parte do espaço aos carros. Em paralelo, vem a qualidade: os sistemas precisam ser eficientes, acessíveis, seguros e atender às necessidades de todos – mulheres, homens, crianças”.

Segurança, confiança e conveniência

De um lado, caminhar, o mais democrático dos modos de deslocamento. E, de outro, a bicicleta, modo que quebrou alguns paradigmas históricos. Nos dois, as mulheres são maioria. Haydée Svab, da Poli-USP, apresentou informações de um estudo que comprovou: as mulheres são as que mais caminham em São Paulo. Os resultados demonstram como os padrões de deslocamento, mais do que uma opção entre modos de transporte, indicam também papéis sociais ainda desempenhados majoritariamente pelas mulheres – como levar e buscar os filhos na escola e fazer as compras da casa.

A pé ou de bicicleta, as condições de segurança em que esses deslocamentos acontecem podem encorajá-los ou ser um desincentivo a essas opções – o que, consequentemente, acaba restringindo a liberdade de ir e vir das mulheres que dependem desses modos de deslocamento. Segurança, confiança e conveniência, conforme explicou a diretora do ITDP Brasil, Clarisse Linke, são os três pilares considerados pelas mulheres na escolha do meio de transporte, e o Desenvolvimento Orientado ao Transporte Sustentável (DOTS) tem o poder de potencializá-los. “É possível fazer um desenho urbano que aumente as condições de segurança – a interação das fachadas e pisos térreos das construções com a calçada é um dos princípios do DOTS que aumenta a segurança dos ambientes urbanos”, avaliou a especialista.

Foto: Mariana Gil/WRI Brasil Cidades Sustentáveis.

“A mulher está pedalando em direção ao sufrágio”, disse a feminista Elizabeth Staton (1815-1902), referindo-se ao direito ao voto feminino e ao uso da bicicleta que, não sendo vinculada a papéis de gênero, influenciou fortemente as transformações da época. Numa perspectiva histórica, a urbanização das metrópoles contribuiu para a desconstrução de alguns valores patriarcais ao trazer novos meios de transporte para as cidades. Nesse contexto, a bicicleta foi considerada um modal igualitário e nivelador entre os sexos, uma vez que permitia a livre circulação das mulheres pelas ruas. Ainda hoje, a bicicleta é um símbolo de empoderamento e emancipação feminina. “Bicicleta também é para as mulheres e também é para as mulheres negras. Aprendendo a andar bicicleta, as mulheres se tornam mais independentes e autônomas – e nunca é tarde demais pra isso”, considera Jamile Santana, do bike-café La Frida.

O uso da bicicleta como meio de transporte, porém, é muitas vezes ameaçado pela falta de segurança. Mila Guedes do Milalá.Altos limites de velocidade nas vias urbanas e a falta de infraestrutura adequada para ciclistas desencorajam muitas pessoas a escolher a bicicleta na hora de sair de casa. No Brasil, essas condições são determinantes para o alto número de acidentes de trânsito registrados por ano no país, atualmente em torno de 43 mil, considerando todos os modos. “As mulheres não são maioria entre as vítimas desses acidentes”, apontou a coordenadora de segurança viária do WRI Brasil Cidades Sustentáveis, Marta Obelheiro. “Mas também são atingidas. Pouco se discute que, no caso dos feridos, esse acidente afeta também um segundo membro da família, que tem de ficar em casa prestando cuidados. Se a maioria dos acidentados são homens, quem normalmente é esse segundo membro?”, questionou a especialista.

Por fim, mas não com menos importância, a acessibilidade também é um fator-base para avaliar se a experiência no transporte ativo – caminhando ou pedalando – é positiva. “Acessos deficientes geram pessoas com deficiência”, atestou Mila Guedes (à direita), do Milalá. A afirmação da painelista chama atenção para a importância da acessibilidade no ambiente urbano. Portadora de esclerose múltipla e com apenas 20% da visão, Mila teve de descobrir novos meios de viver. Na tarde de hoje (5), ela contou sobre a experiência que viveu com as calçadas e o transporte coletivo em Chicago, nos Estados Unidos, em comparação às condições que encontra em São Paulo. Se na cidade estadunidense tanto os ônibus quando os vagões do metrô são adaptados e não impõem qualquer dificuldade em seus deslocamentos pela cidade, na capital paulista a realidade é outra: “Aqui, é preciso se deslocar olhando para baixo”, lamentou.

Aumentar a representatividade feminina no contexto de tomada de decisão e de planejamento das cidades é fundamental para evitar as circunstâncias que hoje ameaçam a vida das mulheres – na rua, no transporte coletivo, a pé, de bicicleta. “Há algo de muito errado na sociedade se estamos sempre expostas a algum risco”, afirmou Clarisse Linke. Garantir que as questões de gênero e a perspectiva das mulheres sejam consideradas nos diversos processos de planejamento e gestão é essencial para a construção de cidades equitativas e seguras.

Foto: Mariana Gil/WRI Brasil Cidades Sustentáveis.

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