‘Não veio a utopia?’ Vinícius Lima do SP Invisível

Sempre que saio às ruas com os meus amigos e amigas do SP Invisível para conversar com pessoas que encontramos no caminho, seja ela prostituta, moradora ou morador de rua, criança, adolescente, catador ou artista de rua, procuro levar algo além dos meus ouvidos. Às vezes levo comida, roupas, porém me recordo até hoje da única vez que levei a maior arma que uma pessoa pode segurar. Lembro muito bem que, em pleno debate sobre redução da maioridade penal, a gente tinha que entrevistar meninos e meninas que moravam nas ruas, então saí por aí distribuindo Drummond, Aloísio de Azevedo, Machado de Assis, Jorge Amado, José de Alencar e munindo essas crianças e adolescentes de informação após cada papo.

No segundo sábado que saímos para entrevistar esses jovens, um menino chamado Pedro (nome fictício) nos marcou muito. Ele tinha mais ou menos uns 10 anos e chorava muito, pois estava com dor de dente. “Ele come muito doce e não escova o dente, senhora”, disse o irmão dele que fazia malabares no farol para Marina, que cuidava do menino sentado na calçada. Depois de muito choro e muito tempo tentando arrancar uma palavra de Pedro, ele disse à ela que queria um remedinho. Ela e o André então foram com ele à farmácia comprar alguma coisa para o menino.

Quando eles voltaram com o remédio, eu fiquei com ele enquanto eles entrevistavam seu irmão para a série de adolescentes do SP Invisível. Estávamos sentados na calçada e, para tentar calar seu choro, decidi ler um livro de poesias que havia levado. Depois de ler vários poemas, um chamou sua atenção, o famoso “E Agora José ?”. Ele lia atentamente verso por verso enquanto aos poucos parava de soluçar: E agora, José ?/A festa acabou,/a luz apagou,/o povo sumiu,/a noite esfriou,/e agora, José?/e agora, você?/você que é sem nome,/que zomba dos outros,/você que faz versos,/que ama, protesta?/e agora, José?/Está sem mulher,/está sem discurso,/ está sem carinho,/está sem carinho,/já não pode beber,/já não pode fumar,/cuspir já não pode,/a noite esfriou,/o dia não veio,/o bonde não veio,/o riso não veio/não veio a utopia… Essa última palavra chamou sua atenção e interrompe a leitura:

– Tio, o que é isso?

– Isso o que?

– Utopia.

– Ah, é uma coisa muito boa que a gente quer que aconteça, mas nunca vai acontecer. Só que a gente sempre luta para que isso aconteça.

Nessa hora fui surpreendido pela sabedoria e simplicidade da resposta daquele menino de 10 anos que pedia dinheiro no farol com o seu irmão:

– É tipo acabar as crianças da rua, né?!

Não soube o que afirmar naquele momento, rapidinho passou um monte de dúvidas e reflexões sobre o que ele quis dizer e o que aquela pergunta carregava. Não foi só uma simples pergunta. Ela veio também com um grito de “eu quero sair daqui”. Veio também com uma denúncia que coloca no chão qualquer jornal. Além disso, veio com um engajamento de dar inveja aos movimentos sociais, inclusive às maiores revoluções históricas como a Russa ou as da Europa em 1968, “Je suis Pedro”. Chegou com tanto sonho e esperança aquele questionamento que nem Luther King ou Galeano esperavam tal resposta. Aurélio que me perdoe, mas a sua simples definição para a palavra deveria estar em todos os dicionários, pois só alguém com muita propriedade do assunto poderia definir o que é “utopia” tão facilmente. Só alguém muito sonhador como o jovem Pedro. 

Para não ficar muito tempo quieto, respondi com outra pergunta e disse a ele:

– O que você quer ser quando crescer?

– Professor – Ele respondeu – de História. 

“Está tudo explicado”, pensei. Mal sabia ele que o seu primeiro aluno já estava à sua frente. Num dia que saí com uma postura prepotente e preconceituosa de “ensinar algumas coisas distribuindo meus livros nas ruas”, fui eu quem mais aprendi no papo com aquela criança cheia de sonhos. O livro ficou com ele, a lembrança comigo. Meus desejos para o jovem Pedro é que numa cidade tão grande e ele que é tão pequeno, não desanime e nem desista de ser o professor que ele já é. E que assim como eu, ele possa fazer por aí outros alunos dentro e fora da sala de aula ao longo de sua vida inteira. 

O Pedro quer ser um professor, mas para isso ele precisa de um. Acabar com as crianças nas ruas pode sim ser uma utopia, como ele disse. Mas é isso que nos faz caminhar, como disse Galeano. Há muitas crianças e adolescentes invisíveis nas ruas do Brasil carregando bolinhas, limões, rodinhos, sonhos e histórias. Histórias essas que precisam de atenção. Não podemos deixar de olhar para essas pessoas e nem que essa esperança que resta a algumas delas se acabar.? O Museu da Pessoa tem um acervo de histórias de brasileiros e brasileiras anônimos e anônimas como o Pedro. É para tirá-las da invisibilidade e mostrar a riqueza da alma humana que existe o projeto. São elas que motivam iniciativas como esta, “SP Invisível”, “Nós, Mulheres da Periferia”, “Caçadores de Bons Exemplos” e vários outros movimentos e pessoas contadores de histórias por todo mundo. São as histórias de vida que motivam e que transformam o mundo e as pessoas. Muito obrigado pelo espaço e pela confiança cedidos pelo museu. 

Vinícius Lima, 19 anos, estudante, é um dos fundadores do SP Invisível.

Especial para o Museu da Pessoa. 

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