O carnaval de rua enquanto alegoria do direito à cidade em sua plenitude

Por Bárbara S. Martins.

“Meu amor, quem ficou nessa dança
Meu amor tem fé na dança
Nossa dor, meu amor, é que balança
Nossa dor o chão da praça”
(Moraes Moreira, “Chão da Praça”)

O carnaval, desde a sua gênese, é uma manifestação política que anualmente toma conta das ruas de todo o Brasil. Essa, que é uma das expressões culturais mais emblemáticas do país, revela muito sobre a forma que as nossas cidades foram estruturadas, evidenciando processos que reforçam a segregação em diversas esferas.

A brincadeira do entrudo, desenhada por Jean Baptiste Debret em 1835. Imagem: Itaú Cultural/Reprodução.

O processo de urbanização na maioria das cidades brasileiras foi acompanhado de múltiplas tentativas de controlar corpos dissidentes por meio da coibição e disciplinamento do espaço público. Imbuídas de uma mentalidade colonialista, as elites embarcaram numa missão de apagar qualquer elemento que não estivesse em conformidade com os padrões europeus de civilização e progresso. Os aparatos institucionais desempenharam papel crucial nesse empreendimento higienista, visando remover dos centros urbanos tudo que pudesse comprometer a imagem tão almejada de modernidade, uma tentativa de enclausurar grupos considerados “subalternos”, estigmatizando e reprimindo seus saberes e modos de viver. Decretos e planos restringiram progressivamente as possibilidades de ser e existir no espaço urbano, e, fora da zona de incidência da lei, o povo encontrou meios de construir seus espaços e manifestações culturais, que sobrevivem até hoje apesar das fortes repressões sofridas ao longo do tempo.

Baile de máscaras no Teatro Lírico do Rio de Janeiro, em 1883. Imagem: Guerave/Reprodução.

Até hoje, a negação do direito à cidade persiste para uma significativa parcela da população, assumindo várias facetas, entre elas a negligência do direito à cultura. No caso do carnaval de rua, a carência de espaços públicos de cultura e lazer, a falta de investimentos e até as tentativas de regulamentação (incluindo punições) por parte do poder público têm, consistentemente, ameaçado a sua existência desde seus primórdios. Por isso, o próprio ato de ocupar as ruas é a prova de que o povo, conforme expresso por Capiba, é “madeira de lei que cupim não rói”, capaz de resistir e fazer valer as suas vontades.

No bairro do Estácio, próximo ao centro do Rio de Janeiro e do atual Sambódromo, sambistas reunidos no carnaval de 1937. Foto: Biblioteca Nacional.

Sempre que as ruas são ocupadas por blocos, tambores, maracatus, troças e afoxés, temos um vislumbre do direito à cidade em sua essência. Ao imergir a fantasia na realidade, o carnaval desafia a ordem e reinventa o cotidiano, reconfigurando, simbolicamente, as hierarquias impressas no espaço. O carnaval e o direito à cidade nascem das ruas como respostas dos oprimidos, diferentes manifestações do desejo e necessidade de mudar a realidade, nos convidando a reivindicar e atribuir novos significados ao espaço urbano. Nesse sentido, em um contexto onde a lógica de produção baseada no valor de troca guia a concepção de cidades como meros espaços funcionais de trabalho e trânsito, torna-se cada vez mais crucial valorizar iniciativas que desafiem e subvertam essa lógica.

Batuque Nagô no Arrasta Axé. Na camiseta de um dos integrantes, lê-se “Carnaval tem seus direitos, quem não pode com ele não se meta!” (Campina Grande, 2023). Foto: Adrielle Amorim.

Festejar sempre foi parte intrínseca do “fazer”, da existência humana, e hoje, enquanto o capital explora todo potencial físico e existencial dos indivíduos, a festa é, sobretudo, um meio de renovar suas forças, uma importante válvula de escape que possibilita um respiro diante do cotidiano avassalador. O carnaval é um lembrete de que, mesmo diante das lutas diárias, é possível encontrar alegria nos ritos de celebração da vida. Essa perspectiva coloca em foco o potencial transformador e revolucionário da classe trabalhadora que, por desempenhar um papel fundamental na construção e manutenção da vida urbana, é detentora do direito de moldar o espaço urbano de acordo com seus próprios anseios e expressões socioculturais.

Durante os festejos carnavalescos, a verdadeira vocação das ruas vem à tona, contrapondo-se à concepção de um espaço a serviço da acumulação do capital. Não é por acaso que Exu, orixá do movimento e da comunicação, é protetor das ruas e estabelece sua morada na encruzilhada, ponto convergente de todos os caminhos, propiciando encontros. E o que é a rua, senão o lugar de interação, construção de sociabilidade, convivências e circulação de saberes?

O bloco Acadêmicos do Baixo Augusta, fundado em 2009, se confunde com o processo de retomada do carnaval de rua da cidade de São Paulo: Divulgação.

Essa força que protege as ruas é, também, impulsionadora de todas as revoluções, incessantemente recriando e conferindo novos significados ao mundo. Por isso a rua é, por excelência, espaço de movimento e ação. Ser um corpo livre, que vive e circula na cidade apesar de decretos, zoneamentos, cordas e tapumes, é um exercício do nosso direito de transformar e revolucionar a cidade. E o carnaval, por sua vez, torna tangível a possibilidade de imaginar e construir um novo tipo de cidade através da subversão do cotidiano pela festa.

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Bárbara S. Martins é graduanda em Arquitetura e Urbanismo na Universidade Federal de Campina Grande (UFCG) e pesquisadora do Núcleo Paraíba do INCT Observatório das Metrópoles.

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