O Hard Grrrls quer recuperar a cultura de festivais Riot Grrrl no Brasil

Só que o a versão em papel do projeto não deu muito certo, porque ela e as suas amigas tiveram umas tretas. Mas a Lucia decidiu que queria continuar alguma coisa, mesmo que fosse sozinha. Ela estava fazendo um curso técnico de Informática e tinha que fazer um trabalho de conclusão de curso. Foi aí que a teve a sacada: transformar o zine, que era em papel, em uma plataforma online. “Pensei que assim teria um alcance muito maior, mais espaço (consequentemente. mais conteúdo) e mais possibilidades de discussões, já que a internet, além de ser um espaço gratuito, também proporcionaria uma integração imediata entre o zine e seus leitores.”

Foi assim que começou o Hard Grrrls, site sobre cultura punk rock feminista que esteve ativo de 2000 a 2006. “De início, listamos diversas bandas femininas —ou com vocal feminino — nacionais e internacionais, linkando aos seus sites e a uma lista de mp3 disponíveis para downloads (lembrando que naquela época não tinhamos sites de streaming como agora e era difícil achar músicas de bandas independentes, principalmente femininas)”. E o que tinha sido idealizado sozinha pela Lucia, logo virou um coletivo, com várias meninas envolvidas no projeto.

“Éramos todas bem novinhas, mas trabalhávamos de verdade para tudo acontecer”, falou Lucia. Com o tempo, elas começaram a escrever colunas colaborativas com as meninas do movimento riot grrrl (uma das colunistas era a Lâmina Pryka Almeida, que na época tinha apenas 14 anos), a fazer entrevistas mensais com as bandas (com perguntas enviadas pelos leitores) e passaram a escrever não mais só sobre rock, mas sobre artistas mulheres no geral. “Passamos a escrever sobre meninas das artes plásticas, da fotografia, sobre ONGs feministas e também sobre outros movimentos de mulheres em geral — como Movimento Negro e Católicas pelo Direito de Decidir, por exemplo.”

Mas foi em 2004 que o que era “só” site foi pra rua e se transformou em festival. “Ganhamos muita visibilidade com o site e, por isso, começamos a armar uns festivais. De seis em seis meses, nós fazíamos uns grandes e, mais ou menos a cada dois meses, outros menores”, conta Lucia. Os line-ups eram sempre compostos por bate-papos/debates, apresentações de espaços/ONGs feministas, exposições e shows de bandas. “A ideia era materializar o site em um espaço em que as garotas pudessem trocar suas experiências, se apoiarem e curtirem um bom rock.”

Quase todas edições maiores do Hard Grrrls Festival aconteceram no Hangar 110, em São Paulo, principalmente quando as bandas convidadas eram mais famosinhas entre as fãs de riot grrrls. “Algumas bandas importantes como Dominatrix, The Haggard (EUA), Pulso (DF) e She Devils (Argentina) já tocaram nas nossas festas”, disse Lucia. Ela e as minas do HG conseguiam lotar o lugar quase sempre. Tanto que, na última edição do festival, no começo de 2006, elas chegaram a ter um público de 600 pessoas. Já os festivais menores, que geralmente tinham só uns dois ou três shows, elas armavam de fazer em picos tipo o Subjazz e o Espaço Impróprio, também na capital paulista, e contavam mais ou menos com umas 50 ou 60 pessoas.

Foi tudo dando tão certo pra elas e as festas foram ganhando tanta proporção no cenário punk feminista do Brasil que o Hard Grrrls acabou ganhando versões em outras cidades fora da capital paulista, como em Piracicaba, Curitiba e Belo Horizonte. E, em 2004, a vocalista do Dominatrix Elisa Gargiulo convidou o HG para produzir a primeira LadyFest Brasil.

Só que, depois desse boom, o site e os festivais só durariam mais dois anos. Elas até tentaram continuar, criando o “The Uni-Fest 4 em 1”, um festival misto que juntava o Hard Grrrls com outros três meios de comunicação importantes da cena na época: o Banheiro de Meninas (programa da rádio Brasil2000), Skate para Meninas (site voltado para as meninas que gostavam de boards) e Força Feminista (projeto feminista de São Bernardo). Só que, conforme elas foram crescendo, entrando na faculdade e tendo que trabalhar, Lucia, Pryka e as outras meninas não conseguíam mais conciliar o Hard Grrrls com a vida adulta. Foi aí que elas decidiram encerrar as atividades do site no começo de 2006.

Dez anos depois do fim do HG, Lucia e Pryka sentiram que, mesmo com toda a popularização do movimento feminista nos últimos anos, principalmente em 2015, esses festivais que elas faziam quase não existem mais hoje. “Estávamos conversando sobre como está faltando espaço para as bandas femininas. Tínhamos avançado muito naquela época, mas agora parece que o movimento riot está muito quieto e sem representatividade, sem um festival que juntasse todas”, contou Lucia. “Hoje, parece que está tudo meio espalhado em pequenos eventos e parece que o movimento não é mais tão ativo. E a gente sente muito falta desses agrupamentos de mulheres que rolava no Hard Grrrls”. Por isso, elas tiveram a ideia de fazer uma edição especial do HG este ano, meio que pra tentar retomar o barulho que elas causaram lá nos anos 2000.

Diferente dos eventos originais, o Hard Grrrls 2016 não voltou ao saudoso Hangar 110, e acabou rolando na Trackers, no centro de São Paulo, no último domingo (28). Como as meninas disseram ali em cima, a nova edição do evento queria reunir tanto a nova quanto a velha leva de riot grrrls de São Paulo, com shows de bandas das antigas (The Biggs, Lâmina e Sta Claus) e mais recentes (In Venus e Charlotte Matou um Cara). Além de música, teve também a exibição do curta-metragem sobre violência doméstica O Remorso, da cineasta Mariana Cobra, e a de vídeos sobre cultura do estupro do Coletivo Somos Mais que Trinta, que nasceu depois do caso de estupro coletivo no Rio de Janeiro em junho de 2016. E, claro, como em qualquer festival faça-você-mesmo, tinham também algumas meninas vendendo stickers, zines e divulgando o trampo feminista delas no evento.

Acabou que o festival deste ano foi menor e atraiu bem menos gente do que nas edições em 2006. “Tivemos só 150 pessoas, mesmo com toda a divulgação que fizemos em redes sociais. Mesmo assim, acho que, como estamos mais maduras hoje, conseguimos fazer um evento mais bem organizado. Talvez tenha sido o melhor até agora”, disse Lucia. Mas as minas garantem que foi só o começo: elas pretendem continuar fazendo mais festivais de minas, meio que nos mesmo moldes, com bandas, exposição de artes e discussões feministas. Lucia e Pryka ainda não sabem direito se vão continuar usando o nome “Hard Grrrls” ou se vão escolher outro, mas é quase 100% de certeza que as minas vão armar alguma coisa já pra 2017.

O Noisey colou no evento, pra sentir esse revival do evento. Além de curtir uns covers de Bikini Kill, Bulimia e, claro, uns sons autorias das bandas que tocaram lá — tanto as mais punkzonas gritaria mesmo, como Charlotte Matou um Cara, quanto o post-punk com sintetizador das gurias do In Venus —, a gente ainda comeu uns salgados veganos e fizemos umas fotonas de como foi tudo, que você vê abaixo. Saímos de lá só podendo garantir um negócio: punk rock de fato não é só pro seu namorado e o riot grrrl ainda vive, sim senhor.

Beatriz Moura no Vice.com.

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