A relação entre a exposição que esteve na Bienal de São Paulo e a que agora se mostra em Serralves, naquela que é a primeira itinerância europeia da bienal brasileira, “é como a de um vinho e uma aguardente: têm sabores diferentes, mas percebe-se a ligação”, diz o escocês Charles Esche, um dos curadores de Como (…) coisas que não existem, que esta sexta-feira se inaugura no Museu de Serralves, onde permanecerá até 17 de Janeiro do próximo ano.
Apresentando 28 artistas e colectivos, dos 75 que puderam ser vistos em São Paulo entre Setembro e Dezembro de 2014, a montagem da exposição em Serralves implicou mostrar cerca de um terço das obras num espaço dez vezes mais pequeno. Uma restrição que se revelou positiva: “Acho que o sabor aqui é mais intenso”, assegura ao Público, Charles Esche, um dos três curadores — os outros são Galit Eilat e Oren Sagiv — responsáveis pela selecção de obras agora mostrada no Porto.
Com uma fortíssima dimensão social e um óbvio desejo de denunciar os efeitos mais negativos da globalização ao mesmo tempo que imagina e pensa outros possíveis, a exposição “conta sensivelmente a mesma história no Brasil e em Portugal”, diz ainda Esche, mas observando que a necessidade de adequar as peças à arquitectura de Siza Vieira gerou diálogos entre determinadas obras que não existiam em São Paulo.
O curador confessa ainda não ter ficado “totalmente satisfeito” com as obras que resultaram de algumas das encomendas feitas para a bienal paulista, e nota que os curadores tiveram agora a possibilidade de escolher a partir de peças que já conheciam.
O texto que Esche e Eilat escreveram para o livro que Serralves editou para acompanhar a exposição — e que se afasta um tanto do catálogo convencional, incluindo não apenas textos críticos, mas contribuições heterogéneas de vários dos artistas representados —, enuncia com invulgar clareza a convicção de que a arte pode mesmo ajudar a mudar o mundo.
Vendo neste início do século XXI “uma época de decepção”, os curadores observam que “os movimentos de oposição estão a ganhar força colectiva, mas terão ainda de apresentar uma narrativa alternativa convincente”, e que, por agora, “a indecisão e o medo dominam tudo e todos”. Mas admitem haver motivos para esperar que “uma grande transformação” venha a “ocorrer mais cedo ou mais tarde”, o que tornaria “urgente” existir, argumentam, “capacidade da imaginação para preparar o terreno”, algo que “a arte no seu melhor pode realizar”.
“Como (…) Coisas Que Não Existem” – Uma Exposição a Partir da 31.ª Bienal de São Paulo.
Petição ao Papa
Uma das mais sedutoras obras presentes nesta exposição, com a sua mistura de crítica e humor, é Errar de Deus, uma instalação do colectivo argentino Etcétera que parte da obra de León Ferrari e utiliza algumas das peças deste artista iconoclasta desaparecido em 2013. Ferrari foi censurado na Argentina pelo então arcebispo Jorge Bergoglio, o actual Papa.
Numa sala rodeada por imagens alusivas à devastação dos recursos naturais na América latina, uma bancada vermelha com telefones permite aos visitantes ouvir as conversas de deus com o Papa, Angela Merkel e vários outros interlocutores. Uma ideia inspirada num livro de Ferrari em que este colava trechos bíblicos a notícias de jornais e outros textos, criando diálogos inesperados.
Uma vitrine expõe os divertidos objectos criados por Ferrari, que associam uma estética de brinquedos de bazar a mensagens por vezes bastante violentas, de um Jesus guiando um tanque a Hitler apanhado numa dessas ratoeiras clássicas que aparecem nos desenhos animados de Tom e Jerry ou Speedy Gonzales.
Numa parede, recolhem-se assinaturas para uma petição, a ser entregue ao papa Francisco, pedindo a abolição definitiva do Inferno. Novamente, trata-se de recuperar uma iniciativa original de Ferrari, que escreveu duas vezes a João Paulo II a solicitar-lhe que extinguisse esse local de eternos suplícios. Federico Zukerfeld, um dos elementos do colectivo Etcetera, argumenta que num mundo onde a tortura está ainda hoje tão presente, o Papa deveria decidir se a religião é “um aparelho de guerra e tortura ou uma fonte de libertação”.
A ideia de criar coisas que (ainda) não existem, está bem representada logo na primeira sala do percurso expositivo, onde uma obra da chinesa Qiu Zhijen — enormes mapas que não cartografam apenas lugares, mas também ideias e emoções — convive com uma instalação resultante do trabalho conjunto de crianças e adultos envolvidos num projecto com refugiados palestinianos e moradores de uma favela brasileira.
Noutra sala, uma floresta suspensa de acrílicos figurando um arquivo de documentos da CIA sobre a ditadura brasileira, concebida pela chilena Voluspa Jarpa, dá o tom a várias obras relacionadas com o passado colonial e a heranças das ditaduras latino-americanas.
Com uma forte representação brasileira, mas incluindo também artistas das mais diversas proveniências — da Argentina ao Chile e à Colômbia, de Portugal e Espanha à Itália ou Polónia, de Israel e da Palestina à Turquia ou à China, esta é uma exposição que lida abertamente com os conflitos do presente, da destruição de património no Médio Oriente às tensões russo-ucranianas. Mas Charles Esche prefere falar da sua dimensão “social”, e “não tanto política”, pelo menos em sentido mais estrito, até porque, recorda, o historial de violência na América Latina não é apanágio exclusivo da direita.
Sintomaticamente, o percurso acaba no Inferno, título de um filme de Yael Bartena que mostra a inauguração de uma réplica do templo de Salomão em São Paulo, construída pela Igreja Universal do Reino de Deus com pedras vindas de Israel.
Luís Miguel Queirós no Público.