O moço da caderneta

Seu Aranda – na realidade é Seu Aranda Filho – me conhece desde criança. Seu pai era dono do Empório Aranda, esquina com Arthur de Azevedo, 50 anos atrás. Era um comércio grande e atendia toda a freguesia de Pinheiros, Vila Madalena, Vila Beatriz, Jardim Paulistano e Jardim América com entregas a domicílio. Não, não havia supermercados por perto ainda. À época, a conta mensal era anotada na caderneta e a lista de compras feita por telefone, tudo na confiança.  Os pedidos eram anotados no papel, entregues na data marcada – muitas vezes no mesmo dia – e no fim do mês chegava a conta com o total a pagar, sem erro, sem maracutaia alguma, tudo no fio do bigode. A caderneta registrava o total.

Quando eu era garotinha, Seu Aranda é quem fazia as entregas. Fiquei impressionada com a memória dele. Perguntou pelos meus tios Luiz e Flávio – contei que um havia falecido e o outro estava velhinho, morando no interior –, pelas minhas tias Maria Estela e Beatriz e por minha mãe. Na altura dos seus 84 anos, ele ainda lembra todos os endereços da família no passado; falou um por um, acertando inclusive o número das residências de minha avó Nina, de meus tios e tias e das irmãs de minha avó. E ainda mencionou o Lorde, um cachorro que ele adorava e diz ter ganhado de minha mãe.

Este Empório de secos e molhados não existe mais e reencontrei Seu Aranda há uns 20 anos, trabalhando numa oficina perto de onde morei na Vila Madalena. Ele ficou felicíssimo quando disse que minha mãe iria levar o carro dela para consertar. –Nossa, vou ver dona Dora, que alegria! 

No nosso recente encontro ficou triste ao saber que ela não vai bem de saúde e que já completou 90 anos.

A oficina onde trabalhava fechou, mas ele continua residindo na Vila Madalena, onde mora desde moço, e tem saudades de toda a minha família e, claro, de seu antigo negócio, o empório. 

Um tempo e tanto aquele das cadernetas – do padeiro, leiteiro, empório e também do verdureiro que chegava à porta de casa com uma carroça repleta de legumes e frutas. Coisas de um passado não tão longínquo, quando a retidão prevalecia, a confiança entre as pessoas existia. 

Naquela época, qualquer dúvida a respeito da conta anotada na caderneta representava a ameaça de perder a freguesia, e mantê-la fiel era questão de honra. Agora não.  Nesses dias, no país em que vivemos, outro tipo de “caderneta” vigora: a que traz valores superlativos de propinas entre políticos e empresários. Planilhas com números espetaculares, milhões e mais milhões tratados como troco, dinheiro de pinga. Dois ou três dígitos de milhão pra cá e pra lá afrontando um país quebrado, lotado de desempregados. Quem paga essa conta? E até quando?

***
Marina Bueno Cardoso, jornalista, trabalhou na imprensa em São Paulo e na área de Comunicação Corporativa de empresas. É autora do livro “Petit-Fours na Cracolândia”, Editora Patuá. Publica crônicas quinzenalmente no São Paulo São que são replicadas no site literário www.musarara.com.br

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