O que pensa e sente o povo da periferia?

Há quase 100 anos, o Partido Comunista da União Soviética, PCUS publicou uma coletânea de artigos de Lenin com o titulo de “Sobre os sindicatos”. Vários desses artigos insistiam em um tema chave da esquerda: como os enfrentamentos diários com os patrões e o governo formavam aquilo que podemos chamar de “consciência de classe”. Mais do que a propaganda, as escolas de quadros, a agitação da imprensa sindical e partidária, “a vida ensina”, como dizia o título de um desses artigos.

A vida ensina muitas lições e nem sempre aquelas que queremos aprender ou aquelas que julgamos que os “aprendizes” deveriam aprender. E se os enfrentamentos formam a consciência, também essa consciência é afetada pela ausência de enfrentamentos, quando a luta política é substituída pela “cooperação entre as classes”.

A vida ensina, também, através de um meio silencioso e aparentemente “neutro”: o bombardeio das urgências cotidianas, o tempo consumido pela batalha da sobrevivência em condições de super-exploração. Uma das hipóteses da pesquisa indica esse fator – e ela foi derivada de observação anterior sobre as condições de vida da massa trabalhadora. Difícil pensar quando o tempo nos oprime. A classe trabalhadora das grandes cidades brasileiras vive um cotidiano em que ä jornada de trabalho de 9 ou 10 horas se junta uma “jornada adicional” de várias horas em trânsito, amassada em transportes coletivos similares a cadeiões e presídios. Difícil classificar como “tempo livre” aquelas horas em que o cidadão sacode em um trem ou ônibus. Caso imagine ler um jornal ou livro, o aperto já o impede. A angustia da situação – aperto, e desconforto, risco de roubo, temor de atraso – logo apaga qualquer possibilidade de devaneio reflexivo.

A vida ensina – ensina, inclusive, a não apreender. Ou a aprender, apenas, a ter reflexos condicionados, a ter medo, a ser obediente e acomodado, a suportar o que existe pela falta de alternativas.

Se um cidadão está habituado a ver os serviços públicos fundamentais para sua vida – escola, saúde, transporte, energia e saneamento – como mercadorias a comprar, pagar e receber, não devemos estranhar que utilize essa forma mental para encarar candidatos a gerir tais recursos. São “gestores” mais ou menos eficientes de “mercadorias”.

Ao lado desses fatores ditos objetivos, somam-se alguns outros condicionadores do comportamento e das ideias que podemos chamar de fatores subjetivos. Entre estes, destacam-se as diferentes agencias sociais como a escola, a família, a igreja, os meios de comunicação. São agentes formadores de ideias, sentimentos, valores e, por isso, de comportamento, escolha, decisão.

Os grandes momentos de medida das decisões – como as votações – sempre nos chamam atenção. Mas é preciso olhar para a as decisões e escolhas pontuais, cotidianas, pulverizadas. Quando um cidadão escolhe um candidato porque personifica tais e tais valores, é preciso perguntar por que tais valores se tornaram critério para a escolha. E como. Aí, mais do que nos grandes momentos, como as campanhas eleitorais, reside o poder dos meios de comunicação, das igrejas e dos hábitos cotidianos.

A pesquisa da FPA mostra um desses componentes, fundamental no cotidiano das massas trabalhadoras – o manejo dos medos e das crenças, das inseguranças e das esperanças, a afirmação “superior” do que é bem e do que é mal, em um mundo em que tudo parece instável, confuso, pouco confiável. Já houve tempo em que nas periferias das cidades espalhava-se uma teologia da libertação, da esperança de um novo tempo, mais justo e igualitário. Ela foi paulatinamente substituída por uma teologia da prosperidade – mas também do castigo, da punição, do olho por olho. Está mais do que na hora de pregar uma nova ressurreição, a ressurreição da esperança e da crença numa vida construída na luta coletiva, no sonho coletivo.

Você pode ler os resultados neste endereço: http://novo.fpabramo.org.br/content/percep%C3%A7%C3%B5es-na-periferia-de-s%C3%A3o-paulo

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Por Reginaldo Moraes em seu blog no GGN.

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