Este já deve ser meu terceiro ou quarto artigo falando deste assunto e, certamente, não será o último. Temos que falar de espaços públicos e parques, o assunto deve estar na pauta. Gestores, arquitetos, cidadãos diariamente devem ser convidados a refletir e compreender que, através de cidades mais verdes, teremos um futuro mais equitativo, sustentável e saudável.
Falar de parques e espaços públicos não é mais falar sobre lazer. Longe disso. A cada dia pesquisas comprovam o papel das áreas verdes, esportivas e de recreação na qualidade de vida, na saúde física e mental, prevenindo obesidade, diabetes, depressão e outras doenças, e garantindo a construção de cidades mais humanas, resilientes e sustentáveis.
Buscando dar a este tema a visibilidade que merece, a ANPR, Asociación Nacional de Parques y Recreación de México, promove desde 2018 o Congresso Mundial de Parques e desde 2019 o Congresso Sulamericano de Parques.
Em 2021, o evento Sul-americano, on line, porém sediado em Guayaquil, aconteceu entre os dias 3 e 6 de maio. Dezenas de experiências exitosas de Parques e Espaços Públicos desenvolvidas na Sudamérica foram apresentados, além de seis conferências magistrais. Eu mesma estive lá, contando sobre o modelo de gestão que implantamos no Parque da Gare em Passo Fundo, com parceria da Associação da Feira do Produtor, Iniciativa Privada e Poder Público, buscando estratégias que garantam o uso economicamente sustentável do parque, além de trazer vivacidade ao lugar por 16 horas do dia, 7 dias por semana.
Mas hoje quero destacar os aspectos apontados pelo arquiteto Guillermo Peñalosa em sua brilhante conferência Cidades e Parques Pós Covid: Saúde, Equidade e Sustentabilidade. Primeiramente apresento Guillermo: Gil (como é chamado) é fundador e presidente da organização canadense sem fins lucrativos, internacionalmente reconhecida, 8 80 Cities, é o primeiro Embaixador Mundial de Parques Urbanos, Presidente da Gil Penalosa & Associates e recentemente criou o Our Third Act, Older: Healthier and Happier, já trabalhou em mais de 350 cidades diferentes em todos os continentes, e também é irmão do ex-prefeito de Bogotá Enrique Peñalosa.
Sua fala começa ácida, como deve ser o debate quando falamos de equidade social em nossas cidades. Primeiro alerta: durante a pandemia 80% dos leitos de hotéis estão completamente vazios enquanto centenas de milhares de pessoas dormem nas ruas das cidades sulamericanas. Ele vai percorrendo a temática da equidade para chegar nos espaços públicos, com um discurso que destaca a importância da mudança radical na forma de pensar e administrar as cidades se quisermos realmente ter cidades mais justas e humanas.
Peñalosa chama atenção de que pouca coisa mudou efetivamente durante a pandemia, o que mudou foi a percepção de alguns problemas urbanos que não tínhamos antes. A falta de espaço ao ar livre para realização de atividades físicas se tornou uma grande dificuldade nas cidades. Calçadas estreitas, poucos espaços livres abertos para as pessoas se exercitarem mantendo o afastamento social trouxeram à tona uma questão que sempre existiu, mas que muitas vezes ficava relegada nas gestões.
Diversas cidades responderam rapidamente aos novos desafios. Bogotá, Paris, Portland, Toronto, Berlim, Los Angeles, Nova York, Guadalajara, Cidade do México entre outras implantaram ciclovias temporárias, conectando os espaços verdes existentes, que possivelmente passem a ser permanentes, criaram ruas de lazer e esporte. Isto ocorreu devido a mudança de percepção da rua, entendendo-a como um espaço público que pode e deve ser de direito de todos. As cidades mudaram sua feição e as pessoas puderam sair de suas casas e praticar exercícios, andar de bicicleta, chegando em lugares antes desconhecidos. Para ele, esta opção sempre esteve disponível, mas não era prioridade das gestões.
Outro tópico importante, que já tratei também em um artigo sobre cidades pós pandemia, é a criação de espaços públicos estruturados em áreas verdes já existentes. Ele fala inclusive sobre como um parque estruturado beneficia um número muito maior de pessoas do que um campo de futebol, e, em realidade, muitas cidades com carência de parques e praças têm campos de futebol em excesso. Não que esteja sendo contra o campo em si, mas defende um melhor aproveitamento das poucas áreas verdes públicas das cidades, garantindo acesso a pessoas dos 8 aos 80 e igualdade de gênero.
Toda a fala do arquiteto está estruturada no poder transformador dos parques, nos benefícios de saúde, bem estar, convívio e qualidade de vida, e por consequência desenvolvimento humano e econômico. Um assunto que me agradou muito foi o conceito de enverdecer a cidade. Ele defende a regra 3 -30 -300: de sua janela você deve ver pelo menos 3 árvores (frondosas e saudáveis); o bairro deve ter 30% da sua área com cobertura vegetal, e a distância entre um parque e outro deve ser de 300m. Com esses índices conseguiríamos obter os benefícios da arborização urbana: redução de temperatura, redução da poluição, melhora na qualidade e beleza do ambiente. A defesa de Gil é pela integração dos parques e áreas públicas com percursos verdes, onde a pessoa possa caminhar com segurança entre esses espaços.
Priorizando as pessoas, o planejamento urbano deve integrar os parques como elemento estruturador de uma cidade que foque nos percursos de 15 min, conceito já tratado aqui no Portal, por nós, em Live com seu criador Carlos Moreno. Por vezes são conceitos difíceis de serem implementados devido ao jogo de forças políticas e econômicas que vemos em inúmeras cidades, mas não são conceitos impossíveis. Paris já lançou seu plano ambicioso, Copenhagen já oferece parques a 10 min caminhando para qualquer cidadão, Amsterdam já tem o maior índice de viagens de bicicleta do planeta.
Para mudar comportamentos devemos mudar o ambiente que nos rodeia. Assim, a direção para uma sociedade mais justa parte da construção de cidades com equidade, sustentabilidade e saúde. Este será o grande debate e espera-se que no pós covid os investimentos venham para garantir essa mudança. Hoje falamos muito de saúde, em virtude da grande tragédia que assola o mundo e em especial o Brasil. Mas, no pós-covid deveremos falar ainda mais, sobre como termos cidades saudáveis, onde o conceito de saúde não seja o de não estar doente, mas sim o de ser feliz e ter bem estar.
Além dos espaços urbanos, devemos assistir a uma valorização da alimentação saudável, fundamental para mantermos uma imunidade alta, redução do consumo de carne, um dos alimentos que mais contribui para a degradação do meio ambiente, acesso a água potável e saneamento. Mas para isso as políticas públicas devem corrigir seu rumo. Deixar de priorizar o carro, e entender o que é importante na escala das pessoas. Levar hortas públicas às escolas e praças, implantar programas de esporte nas praças e parques, sobretudo implantar parques e entender que falar em direito a cidade é falar em levar espaços públicos de qualidade para todos, em especial para as populações menos favorecidas economicamente. Direito a cidade não é sobre ter uma casa e sim sobre ter uma vida com qualidade em uma cidade, com transporte público, equipamentos de saúde e educação e áreas de lazer, esporte e natureza.
Guillermo destaca que a mudança não é unânime, mas que o interesse coletivo deve prevalecer sobre o particular, e que as soluções para “enverdecer” a cidade, torná-la mais humana e saudável para as pessoas parte de uma decisão política. Para isso, aqueles que compreendem o papel dos parques e espaços públicos devem trazer à tona o debate da urgência da construção de parques com a visão da saúde e desenvolvimento econômico. Por isso escrevi este artigo, buscando distribuir esta mensagem poderosa.
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Ana Paula Wickert é arquiteta e urbanista, mestre em Arquitetura e MBA em Marketing pela FGV. É palestrante, consultora e criadora do portal ArqAtualiza.