E a bicicleta tem um papel de destaque neste compromisso. Serão mais de 50 medidas para promover o uso da bicicleta, incluindo um grande investimento na construção de ciclovias e em ações que promovam a mudança de hábitos dos portugueses. Portugal pedala para frente – metafórica e literalmente – e trata o assunto com a seriedade que merece, como bem mostra o contexto considerado pelo país para definir a nova estratégia: “o governo encara o ambiente como uma das suas apostas prioritárias, numa altura em que o país e o mundo se debatem com os efeitos das alterações climáticas, que estão a desequilibrar o termómetro do planeta e que expõem Portugal aos perigos decorrentes dos degelos, da subida das águas do mar, das secas prolongadas e do risco agravado de incêndios.
O programa do governo tem como objetivos tornar a sociedade e a economia portuguesas mais preparadas relativamente ao grande desafio de reduzir as emissões de gases com efeito de estufa e atingir a neutralidade carbónica nos próximos 30 anos. As ações governamentais se apoiam em três grandes frentes – a promoção do transporte público, a eletrificação dos veículos e a transferência de utilizadores para modos de deslocação mais sustentáveis e ativos, como a bicicleta.” E o documento completa: “a utilização da bicicleta contribui para a maioria dos objetivos de desenvolvimento sustentável definidos pela Organização das Nações Unidas, e a sua promoção deve ser encarada de forma objetiva, sistematizada, transversal e ambiciosa.”
Em termos práticos, Portugal deverá ter 10 mil quilómetros de ciclovias até 2030 e criar incentivos para fazer com que as bicicletas respondam por 7,5% de todos os deslocamentos no país, valor que é a atual média europeia e que está muito acima da realidade atual de Portugal, que tem a bicicleta como responsável por apenas 1% das deslocações. Para as cidades, a meta é ainda mais ambiciosa: as bicicletas devem, nos centros urbanos, ser o meio de transporte escolhido em 10% de todas as viagens. E não são apenas os trajetos do dia-a-dia que irão se beneficiar: um dos pilares importante da nova estratégia é o turismo de bicicleta. Estudo apresentado pelo Parlamento Europeu em 2012 apontou que as viagens nas magrelas geraram 20 milhões de estadias, com um impacto econômico de 44 milhões de euros ao ano na União Européia. Ou seja, se o apelo ambiental não sensibiliza todos, o dinheiro no bolso com certeza faz a roda girar.
Vale lembrar também que a Declaração de Paris prevê que em outubro deste ano seja votada a proposta de desenvolvimento de um programa europeu para promover a bicicleta. A Federação Européia de Ciclistas (ECF), em parceria com a indústria e entidades setoriais, já apresentou uma série de recomendações e dados para a elaboração desta proposta. A meta é incrementar o uso da bicicleta em 50% entre 2020 e 2030, reduzir pela metade os acidentes fatais e graves e ampliar o investimento europeu para 3 bilhões de euros (2021/2027) e 6 bilhões de euros (2028/2034). Hoje, a indústria e os serviços em torno da bicicleta já geram cerca de 650 mil postos de trabalho na Europa. Em todas as estatísticas, já se consideram também as bicicletas com assistência elétrica, que hoje já são quase sete milhões circulando pela Europa e que devem superar os 60 milhões de unidades em 2030.
Mas apesar de Portugal ainda ter que pedalar muito para chegar ao mesmo nível dos vizinhos europeus, o compromisso assumido com esta nova estratégia nacional dá um grande impulso para uma série de ações que isoladamente ou em conjunto já vem sendo tomadas nos últimos anos. O projeto Portuguese Trails, que incentiva o turismo em bicicleta, é um dos bons exemplos. Já são mais de 14 mil quilómetros distribuídos em cerca de 400 percursos. Quem quiser conhecer, aliás, vale dar uma navegada pelo site (www.portuguesetrails.com) e sebo nas canelas! Pelas cidades, os planos de desenvolvimento e de mobilidade urbana sustentável também fizeram com que os investimentos fossem ampliados de forma significativa, o que deve fazer com que até 2023 os municípios tenham uma rede de vias para bicicletas com mais de 6 mil quilometros, número que deverá continuar crescendo até o fim da próxima década.
Aqui em Ovar, cidade que já tem muita pista exclusiva para as bicicletas, as mudanças seguem com a construção de interligações, extensões e remodelações de trechos já existentes. Em alguns trajetos, optou-se por reduzir uma faixa da pista dos carros para aumentar o espaço para as bicicletas. No caminho entre o centro de Ovar e a praia do Furadouro, percurso com pouco menos de cinco quilômetros, os carros perderam uma faixa e as bicicletas, que já tinham uma ciclovia, ganharam mais uma pista vermelha. Com isso, ir de bicicleta para a praia é muito mais rápido do que ir de carro. E chegando lá, outra vantagem: estaciona-se as bikes quase na areia. Já quem prefere ir de carro, já sabe que vai rodar, rodar, rodar e rodar até achar uma boa vaguinha.
Outro ponto que sustenta a estratégia e serve como alavanca para o crescimento do uso das bicicletas é a indústria. Portugal é o terceiro maior fabricante de bicicletas da Europa, com grande parte da produção localizada no distrito de Aveiro. Em 2017, o país produziu quase dois milhões de bicicletas, volume que abastece muito mais o mercado externo. Pois é, “casa de ferreiro, espeto de pau…”. Aqui se faz, mas aqui não se usa (daí uma estratégia nacional para alavancar o uso das magrelas). Em um ranking da Federação Europeia de Ciclismo com os países que apresentam contextos mais favoráveis para andar de bicicleta, Portugal aparece na 27ª posição, em uma lista de 28 países. Os principais entraves, aponta o ranking, são a taxa de sinistralidade e a reduzida malha de ciclovias. Portugal apresenta uma taxa de mortalidade 11,9 pessoas por milhão, o que fica acima da média da Europa. O carro ainda é o principal meio de transporte, superando até mesmo o transporte público e coletivo.
Economia e sustentabilidade à parte, outro dado que está por trás da nova estratégia é o alarmante índice da prática (ou da falta dela, melhor dizendo) de exercícios físicos da população portuguesa. O país é um dos membros da UE com as menores taxas, o que gera um sério problema de saúde pública. De acordo com dados recentes, 74% da população declara que nunca ou raramente praticam exercício. Entre os que praticam atividades físicas de forma regular, o índice caiu de 8% (2013) para 5% (2017).
Mas a mudança não se dará apenas com mais bicicletas e mais pistas. A estratégia considera também que é fundamental haver uma mudança de mentalidade, nem que seja para criar uma nova forma de ver o uso da bicicleta nas próximas gerações. Além de alterações na legislação e nos códigos de trânsito, o que já pode ser um incentivo a mais para os que temem pela segurança, por exemplo, o ciclismo já começou a ser incluído como matéria extracurricular no ensino público desde o 1º ciclo. Também as auto-escolas deverão ter aulas específicas sobre os cuidados que os motoristas devem ter com os ciclistas e pedestres.
A visão expressa no documento recém validado e apresentado para a sociedade há poucos dias resume o que se espera ao colocar a bicicleta no centro da tomada de decisões sobre ambiente, mobilidade e sustentabilidade. “Queremos um país orgulhosamente ativo, onde pedalar é uma atividade segura e amplamente praticada, constituindo opção de mobilidade acessível e atrativa, maximizando benefícios para a saúde, economia e emprego, ambiente e cidadania”.
Leia também do autor: Pegando as magrelas em 2019
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Marcos Freire mora com a família em Ovar, Portugal, pequena cidade perto do Porto, conhecida pelo Pão de Ló e pelo Carnaval. Marcos é jornalista, com passagens pelas principais empresas e veículos de comunicação do nosso país. Escreve quinzenalmente no São Paulo São.