A São Paulo de meados da década de 70 era mais fria. De manhã, não dava para sair de casa sem usar “japona”. Moleque caipira, o paraíso era conhecer aquilo que só sabia existir por jornais e pelo radinho de pilha. E quanta gente esquisita e apressada. E dava um orgulho bobo de estar ali, no meio das coisas que aconteciam, de gente que falava que a ditadura tinha que acabar, de cabeludos e meninas bonitas e que conversavam sobre qualquer assunto…
Na minha pequena cidade, meu apelido era “Andarilho”, de tanto bater perna pelas ruas sem motivo ou lugar algum. Na São Paulo imensa, então… Vida boa de estudante de meio período, criei uma mania: entrava num ônibus qualquer com destino ao que não conhecia e descia no ponto final. Via as ruazinhas e vielas da cidade, comia ovo colorido nos botecos e, de vez em quando, cruzava com o carrinho que vendia bijou. Ali, naquelas quebradas, comecei de fato a conhecer a cidade que nunca mais tive coragem de deixar.
Meu primeiro espanto cultural foi quando percebi que aquele sotaque italianado da Mooca não era padrão do meu novo espaço encantado. Tal como hoje, o que rolava nas ruas dos bairros mais distantes era a dança silábica do Nordeste, com suas variações. Ah, e tinha muito mineiro também. Quase todos eles, brasileiros que chegaram atrás da sobrevivência ou do sonho. Alguns faziam o bate-volta, mas na SP daqueles tempos a maioria ficava e só voltava de vez em quando com os presentes, uma prova para os parentes do “sucesso” conquistado com muito trabalho, marmita fria e sufoco nos ônibus lotados.
Aprendi, com o tempo, que as velocidades são várias na cidade. Quando o dinheiro dava, às sextas ia ao Ponto Chic, o mesmo que resiste no Paissandu. Era o dia da roda de bambas do samba paulistano. Seu Geraldo Filme, o grande compositor de várias escolas, um dia foi importunado pela coragem do moleque cabeludo já com algumas entradas na cabeça. Foi simpático e me marcou com uma frase. “Meninão, você é branquinho, mas logo vai aprender que São Paulo é de negros e nordestinos também e aqui cada um tem sua pressa.” Geraldo Filme era um negro alto, sempre elegante geralmente em seu paletó e sapatos brancos e com um vozeirão de responsa. É autor de um samba enredo belíssimo que retrata a construção da Sé por Tebas, um escravo que negociou sua carta de alforria em troca da construção da praça.
Diversidade em todas as esferas
No Ponto Chic, o garçom era o Ademir da Guia, ligeiramente parecido com o genial jogador do Palmeiras das décadas de 70 e 80. Ah, o Ademir… São Paulo me proporcionou também, um apaixonado pelo futebol, o prazer de ver no Pacaembu alguns dos maiores jogadores que o mundo teve. Embora tivesse desde criança o saudável hábito de amar o Santos Futebol Clube, quantas vezes não fui ao “próprio da municipalidade” só para ver Ademir jogar. Uma matada de bola no peito do Divino era uma obra de arte…
Quando ia ao Pacaembu, descia do ônibus em algum lugar da Angélica que me permitisse andar bastante pelas ruas sinuosas perto do estádio. Quarenta anos depois, a cidade mais louca e completamente mudada, vou ao mesmo estádio com meu filho de 11 anos.
Fazemos agora um trajeto diferente. O gostoso é descer na Brigadeiro e seguir pela Paulista. Se for domingo, então, é festa para o moleque. Ele adora ver “gente diferente” do seu cotidiano de menino de classe média nascido e criado em bairro. Um dia de semana, quando andávamos pela Paulista, do nada ele me disse. “Pai, um dia quero morar na Paulista.” Perguntei a razão e ele foi rápido. “Parece que as coisas acontecem aqui, ninguém é igual ao outro, tem gente de todo tipo.”
Aprendo muito com o olhar do moleque. Há uns 6 meses, o levei num domingo de manhã para a missa de sétimo dia de um amigo. Foi na Igreja de Santa Ifigênia, no centro velho. Passo sempre pelo centrão e o olhar fica destreinado. Mal destreinado, aliás. “Pai, como tem morador de rua aqui. Que vida difícil essas pessoas levam.”
Me senti um ogro insensível por não haver notado tanta gente jogada no cimento frio, mas também com um tremendo orgulho de ver que estava ali um olhar infantil atento à gente que sofre. Há esperança, me aquietei.
A São Paulo que virou Sampa cuidou de minha vida, de meus amores, casamentos, empregos, erros e afetos certos. Nela nasceram meus filhos. Dois já andam pelo mundo com seus RGs. A que o caçula começa a conhecer melhor está um pouco diferente. Tornou-se definitivamente, a meu ver, o reduto maior do que tem de melhor e pior no país. Não é mais, como foi, o único endereço dos que aqui chegavam fugindo do futuro de vida garantidamente curta. Não faz mais tanto frio, os corres do centrão e das quebradas estão mais violentos e o Ademir da Guia se aposentou faz tempo. Mas existe uma Sampa nova, mais cosmopolita e, incrível, acolhedora até. Tá bom, às vezes, admito. Mas é inegável que não há cidade que ostente tanta diversidade em todas as esferas. É aqui que a criação dá alô e se recusa sempre a entoar o tchau. É no asfalto e na poeira da perifa que a vida corre, quase sempre difícil, mas com ilhas que vão se juntando na tentativa de construir o recreio. Sempre tem alguém acordado, esperando ou começando.
Muita coisa mudou, ninguém fala mais japona e muitas vezes o por favor é ignorado ainda. Mas o sotaque das quebradas mistura o porrrta do interior com o nordestino. E a cidade que chamo de minha continua estranhamente linda. Aqui se construiu uma beleza diferente. Na verdade, a formosura se dá em forma de gente. Sampa é do cacete!
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Carlos Eduardo Alves nasceu em Lins (SP) e chegou a São Paulo no dia 22 de dezembro de 1974 para fazer o último ano do colegial no Equipe e estudar jornalismo. Nunca mais quis sair. Rodou muito a cidade, a trabalho, por curiosidade e vagabundagem também. Seus três filhos são paulistanos. Artigo publicado originariamente no Sampa Inesgotável, parceiro de conteúdo do São Paulo São.