São Paulo inovando na intervenção pública sobre o espaço urbano

Quando se vê projetos urbanos interessantes – renovações de bairros nos centros das cidades, com variedade de usos e diversidade social, por exemplo – nos países de Estado forte, como na Europa, é comum nos perguntarmos por que isso não é feito por aqui.
 

Tomemos como exemplo a renovação que vem sendo feita na região sudeste de Paris, nas cercanias da Biblioteca François Mitterand. Prédios novos, muitos dos quais destinados à habitações de interesse social, outros para moradia estudantil, prédios residenciais para venda pelo mercado, escritórios, comércio, e novos campi de várias faculdades, como a Universidade Paris Diderot ou a Escola de Arquitetura de Val-de-Seine. Em outras capitais europeias, como Londres ou Berlim, projetos semelhantes vêm sendo realizados com certa frequência.

Habitação  para locação social na renovação. Paris Rive Gauche, França. Foto: divulgação.

A diferença desses países para o Brasil é uma só: lá, há um forte nível de regulação pública da produção urbana, o que significa dizer, em essência, que o Estado maneja a questão fundiária. Claro que sempre há questionamentos sobre o nível de controle do Poder Público e o poder e liberalidade dado aos grupos econômicos, às construtoras, etc., mas é inegável que o domínio do interesse público é infinitamente superior ao que estamos acostumados a ver por aqui. 

A coisa lá funciona mais ou menos assim: uma vez definida uma área a ser reurbanizada, o Estado adquire a terra pelo valor de mercado (geralmente baixo, dado que são áreas degradadas), planeja o que quer fazer na área, determina os usos: quadras destinadas à habitação pelo mercado, outras para habitação social, equipamentos de educação, esportivos, comércio, etc. Uma vez tudo projetado e definido, promovem-se as obras de infraestrutura, e abre-se um chamamento público para os interessados em desenvolver as construções em questão. Os vencedores – que dependendo do uso podem ser empresas públicas de habitação, ministérios afins (saúde, esportes, educação), empresas privadas de construção, recompram a terra (por um preço bem maior), e geralmente são instadas a promover concursos públicos de arquitetura para a definição final dos projetos. Com uma ou outra variação, esse é o modelo comumente usado, que pressupõe, como se vê, um Estado capaz de investir inicialmente na compra de terras, e um mercado que já entra na concorrência sabendo exatamente o que vai fazer e quanto vai ganhar.

No Brasil, tal equação é praticamente impossível. Pela lógica mesma com que se estruturou nosso Estado e nossa sociedade, em um sistema patrimonialista liderado pelas forças do mercado que, como mostrou Villaça em seu clássico livro (“O espaço Intraurbano no Brasil”), comandam o crescimento urbano segundo seus interesses, e não propriamente o “interesse público”. Aqui, a terra é o “nó” da questão, como aponta Ermínia Maricato, e o Estado fica invariavelmente à reboque do mercado, tendo que correr atrás para obter terras, pagas a preço de ouro.

Para comprar um único prédio no centro é um sufoco, dado os preços exorbitantes estabelecidos pelos peritos judiciais para qualquer desapropriação. Lembremos o caso do Hotel Aquárius, que nunca chegou a funcionar: foi a leilão por R$ 9 milhões, mas ninguém se interessou. Quando a prefeitura quis desapropriar, a Justiça determinou o preço de….17 milhões! Em uma perversa inversão de lógica, o mercado infla os preços fundiários no centro com a desculpa que lá há infraestrutura (que não foi ele, mas o Estado quem fez), e cobra fábulas por edifícios abandonados e há anos sem uso. E os peritos judiciários entram nessa. Curiosamente, a lei da oferta e da demanda parece não valer para a terra nas regiões centrais.

É por isso que o Estatuto da Cidade criou instrumentos como o IPTU Progressivo (tecnicamente chamado de “Parcelamento, edificação e utilização compulsórios – PEUC”), para combater o chamado “mau uso” da função social da propriedade urbana. São Paulo, em uma ação pioneira da gestão de Fernando Haddad, estruturou um departamento específico para notificar os imóveis sem uso e cobrar um aumento regular de seu IPTU, até poder, caso o proprietário nada faça ali, desapropriá-los para fins de moradia social. Mesmo ainda sem esse instrumento, esta gestão desapropriou cerca de 700 milhões de Reais em imóveis e terras, constituindo pela primeira vez uma banco fundiário público na cidade, capaz de receber os investimentos federais (que se espera que venham) em moradia social.

Ainda assim, isso não é suficiente para alavancar, como no caso da França acima descrito, a recuperação de áreas inteiras degradadas, como é comum encontrar no centro. Pela suas dimensões, e pelo preço que seria atribuído pelo judiciário, sairia caro demais.

O PIU de São Paulo e a MP 700/2015

Entretanto, pela primeira vez no Brasil, temos na nossa cidade uma interessantíssima perspectiva de intervenção urbana sob domínio público, em moldes muito próximos ao que se vê na Europa. Trata-se, na verdade, da combinação de dois instrumentos, um legal e outro urbanístico, sobre os quais a prefeitura vem trabalhando há dois anos: a Medida Provisória 700, emitida pelo Governo Federal neste mês de dezembro, e o Projeto de Intervenção Urbanística – PIU, proposto no Plano Diretor da cidade. Vejamos como isso funciona.

A “revolução” representada pela medida provisória é que ela permite que um imóvel desapropriado possa ser objeto de incorporação e obras já no momento da concessão de uso. Me explico: até hoje, quando de uma desapropriação, o ente desapropriador só poderia intervir no terreno ou no imóvel desapropriado uma vez pago todo o valor da mesma, e a propriedade efetivamente transferida. Ou seja, a desapropriação para fins de projetos de moradia ou urbanos, acabava sendo lenta demais, e imobilizando a capacidade de intervenção do Poder Público sobre o espaço urbano. Agora, já com a imissão de posse do terreno, e antes mesmo da transferência final da propriedade, o Estado, ao desapropriar, pode iniciar essas ações.

Com essa possibilidade na mão, os Projetos de Intervenção Urbana, ou PIU, lançados no Plano Diretor de 2014 e agora regulamentados em decreto que está sendo proposto pela Prefeitura, ganham uma outra dimensão: tornam-se efetivamente instrumentos de controle do Estado sobre a transformação do espaço urbano. Ao final deste texto, uma série de desenhos ilustra o processo com clareza.

O Decreto propõe que áreas sujeitas a projetos urbanos (as que compõem a rede de estruturação e transformação urbana – Art. 9º, II), como quarteirões subutilizados e deteriorados no centro ou áreas para implementação de corredores de ônibus – recebam um projeto urbano de intervenção, feito pelo Poder Público, por meio da São Paulo Urbanismo (a antiga Emurb, empresa municipal de urbanização). A escolha das áreas pode ser feita pela própria empresa pública, ou pode ser estimulada pelo interesse do setor privada, por meio de uma Manifestação de Interesse Privado (MIP).

A SP Urbanismo define então o perímetro exato de intervenção e estabelece as características da intervenção, sendo obrigatória a realização de um estudo crítico para compreensão das dinâmicas que levaram à situação urbana do local, do ponto de vista das relações sociais, econômicas e urbanas. A empresa pública determina então os usos desejados, a presença de equipamentos públicos, e assim por diante. Eventualmente, pode realizar chamamentos públicos para a elaboração de projetos, dentro das diretrizes que tiver estabelecido. O que é importante é que, pelo decreto, todas essas ações devem ser realizadas respeitando processos participativos que envolvam os usuários da área. Mesmo no caso de uma manifestação de interesse por parte do mercado privado, estas diretrizes, inclusive as de participação, devem ser respeitadas.

Evidentemente, a proposta de intervenção deverá adequar-se ao zoneamento existente. Assim, passa a ser um instrumento especialmente interessante para intervir em áreas centrais com ZEIS – Zonas Especiais de Interesse Social já demarcadas, pois a obrigatoriedade de produzir habitações sociais continuará a valer no projeto proposto.

Tomemos então um exemplo, conforme pode-se verificar nas ilustrações apresentadas ao fim deste texto: em uma área do centro com ZEIS delimitadas (ZEIS 3 no caso), e em situação de grande deterioração, a Prefeitura pode determinar a realização de um PIU para promover sua recuperação, garantindo inclusive a existência de habitações sociais. Decretaria o interesse social da mesma, para promover a sua desapropriação. Até ontem, isso seria interessante, mas não garantiria muita coisa, pois uma vez iniciado o processo, ele certamente estagnaria na lentidão da ação de desapropriação. Com a MP 700, o processo torna-se mais ágil, já que a SP-Urbanismo pode iniciar a intervenção já na concessão de uso, antes mesmo da transferência final da propriedade.

É claro que em uma área dessas, nem tudo seria destinado à provisão de habitação social, sem o que não se chegaria à diversidade social tão necessária à criação da vitalidade urbana (um princípio hoje peremptório nas intervenções urbanísticas europeias já citadas). Deve-se prever a criação de comércio, edifícios de serviços, empreendimentos habitacionais de renda média e alta, etc. E, para isso, novamente a associação do estabelecido na MP 700 com as diretrizes do PIU tornam-se um instrumento extremamente inovador.

De fato, pela PIU, o Poder Público pode transferir parte dos terrenos da área sob intervenção para alavancar empreendimentos privados com esses usos diversos. O grande problema, porém, seria que os preços pedidos pela SP-Urbanismo ao vender esses lotes ficassem abaixo do preço final da desapropriação, gerando um deficit na operação. De fato, em um processo de desapropriação, a justiça pode determinar, após peritagem, um preço muito acima do inicialmente estabelecido na desapropriação inicial. A prefeitura não poderia valer-se desse valor para vender o lote. A PIU prevê, para isso, um acréscimo percentual no preço pedido na venda do lote, para cobrir essa diferença. Na licitação, será escolhida a proposta que oferecer maior percentual adicional, em relação ao preço inicial da desapropriação. Dessa forma, a prefeitura assegura ter os recursos necessários para pagar o valor final da desapropriação, promover o projeto de urbanização e alavancar a construção de equipamentos e/ou habitações em algumas partes do perímetro sob intervenção.

O resultado é, portanto, surpreendente: pela primeira vez, no Brasil, onde como disse o “nó da terra” é o principal problema a entravar a ação do Estado sobre o urbano, torna-se viável para o mesmo manejar a dinâmica fundiária na renovação de áreas urbanas específicas sujeitas a projetos de intervenção.

Essa operação seria especialmente interessante, por exemplo, em quarteirões inteiros que hoje estão especialmente abandonados na região central da cidade, ou ainda nos lotes lindeiros à realização dos corredores de ônibus nos Eixos de Estruturação Urbana previstos no Plano Diretor, que deverão ser desapropriados. Em vez de ficar a reboque da ação do mercado – o que no caso dos corredores tornaria o processo infindável, pois se dependeria da desapropriação lote a lote dos terrenos afetados -, o Estado passa a ser pró-ativo, determinando não só a desapropriação mas também o que e como se construirá no lugar.

Quais os riscos?

Em um país em que, via de regra, o Estado toma partido dos interesses privados, em especial quando se trata dos interesses imobiliários sobre a cidade, é normal que muitos urbanistas preocupados com a construção de cidades democráticas olhem com desconfiança para a nova modalidade de intervenção urbana que o PIU representa. A possibilidade do setor privado fazer uma Manifestação de Interesse sobre áreas que cobiçam e a partir disso utilizarem o PIU para promover uma renovação baseada em processos de gentrificação e expulsão dos mais pobres assusta, a princípio.

Esta possibilidade, entretanto, não é tão fácil quanto poderia parecer, pois o PIU amarra bem a condução do processo nas mãos de Poder Público e da SP-Urbanismo, e estabelece exigências importantes, quanto ao diagnóstico das dinâmicas que já ocorrem na área, os impactos ambientais e de vizinhança, o atendimento à população moradora de baixa renda, e a realização de processos democráticos e participativos de gestão. Além disso, deve-se lembrar que qualquer intervenção estará sujeita aos regramentos de uso do solo estabelecidos anteriormente para a área, inclusive quanto a usos sociais. Por fim, porque a definição das áreas passará sempre pelo crivo decisório do Poder Público que, por meio da SP- Urbanismo, a aceitará e aprovará.

É claro que, como sempre, ficamos reféns da garantia de um comportamento “público e republicano” por parte do Poder Público. Como em qualquer caso de operações que se baseiam no aproveitamento da potencialidade da regulação pública da atividade privada, os desvios desse comportamento podem custar muito caro à sociedade. Porém, se formos, no Brasil, deixar de lançar tais mecanismos por conta de um pessimismo prévio quanto à nossa consolidação republicana, simplesmente não faremos nada, nunca. Aliás, esse desvio de conduta sempre poderá ocorrer, com ou sem regras urbanísticas. Basta lembrar que, na nossa cidade, as aprovações de edifícios no passado tornaram-se “oficialmente” dependentes de um esquema de pagamento de propinas, e não por acaso pulularam na cidade empreendimentos de grande porte. 

No caso dos PIU, as amarras institucionais estão suficientemente preparadas para que se evitem desvios. Pessoalmente, tenho esperança que em um novo mandato a atual gestão possa efetivamente começar a realizar tais intervenções, conduzidas pelo princípio público, dando exemplo – como de resto torna-se cada vez mais comum – para o resto do Brasil.

Um dos aspectos que poderiam preocupar mas que estão razoavelmente amarrados na proposta é a possível expulsão da população pobre moradora da área renovada, em função do aumento inevitável dos preços imobiliários. A associação do PIU com a MP700 mais uma vez dá uma garantia de atenção à questão. Diz a Medida Provisória em seu artigo 4º: “Quando o imóvel a ser desapropriado estiver ocupado coletivamente por assentamentos sujeitos a regularização fundiária de interesse social (…) o ente expropriante deverá prever, no planejamento da ação de desapropriação, medidas compensatórias”. Especifica ainda que estes assentamentos são aqueles situados em ZEIS definidas no Plano Diretor, ou ainda pessoas inquilinas de imóveis na área em situação de vulnerabilidade (como no caso de cortiços).

Acredito que ainda possam ser colocadas, além da obrigação de dar moradia à população mais pobre, garantias de que ela não seja transferida para uma região distante. Ou seja, que lhe seja dado o direito de permanecer onde já mora (um instrumento que dê tal garantia, aliás, será muito importante quando ocorrer, em um futuro próximo, o desmonte do Minhocão). Na França, que tanto citamos, há impostos estratosféricos quando se compra um imóvel de pessoas idosas morando na área há mais de 15 anos, por exemplo. Aqui, temos na Cota de Solidariedade um instrumento perfeito para isso: por que não definir que, por exemplo, em PIUs de mais de 10 mil m² de área, apresentados por meio de Manifestações de Interesse Privado, e em que não haja ZEIS, 15% da mesma seja doada à prefeitura para realização de HIS? Em casos de PIUs promovidos diretamente pelo Poder Público, supõe-se que quase sempre sejam em áreas com ZEIS e, portanto, já com destinação definida para HIS. Ainda assim, se não for o caso (quando da desapropriação para os corredores de ônibus, por exemplo), a mesma regra pode valer: que para cada 10 mil m² de intervenção, 15% seja destinado à produção de HIS (sugiro um aumento em relação à Cota de Solidariedade no resto da cidade – de 10% para 15% – , dada a ausência total de risco para o empreendedor).

Outro aprimoramento possível é o de que o projeto, uma vez concluído pela SP-Urbanismo, seja aprovado pelo Conselho de Política Urbana (CMPU) e tornado público por algum tempo (por exemplo, 15 dias), para conhecimento da população, antes de seu início, intensificando a apropriação participativa já exigida pelo PIU.

Estas sugestões que faço são possíveis graças a uma outra inovação louvável desta gestão: a de produzir decretos de forma participativa. Neste caso, como em anteriores, a Minuta do Decreto do PIU está aberto para discussão pública e contribuições, no site Gestão Urbana (clique aqui).Temos em mãos a possibilidade de criar, na cidade de São Paulo, de forma inédita no país, um mecanismo efetivo de manejo da urbanização por parte do Poder Público. Ou seja, uma verdadeira revolução. Faça parte dela, clique neste link e participe!!

 

Observação da Lei de Zoneamento vigente sobre a área

Observação da Lei de Zoneamento vigente sobre a área. Desenho: João Sette Whitaker.

 

Definição dos novos usos

Definição dos novos usos. Desenho: João Sette Whitaker.

Resultado final da intervenção, com ciclofaixas!

Resultado final da intervenção com ciclofaixas. Desenho: João Sette Whitaker.

 

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Texto e desenhos: João Sette Whitaker. Professor Livre-Docente da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e Secretário Municipal de Habitação de São Paulo.

 

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