Seu nome é Carlos Douglas

Ele nasceu em Itarantim, Bahia, próximo de Vitória da Conquista, trabalhou na roça aos 10 anos, com 13 foi trabalhar com o tio para aprender mecânica de bomba de água. Quando chegou a São Paulo, à noite trabalhava como motoqueiro entregador de pizza. Há um bom tempo trabalha como manobrista de um estacionamento que uso uma vez por semana, quando vou à terapia.

Neto de francesa, Douglas arranha semanalmente na minha chegada um entusiasmado bom jour madame sucê vá bien? Vu étetrébele sabe disso? A chave madame, não esqueça de deixar. Arigatô, madame. Madame também fala japonês?

Ele queria estudar Direito. Tem três filhos: um na Bahia, outro em Boituva (SP) e a de quatro anos com a mãe. Estimulei-o a voltar a estudar na Educação de Jovens e Adultos do Colégio Santa Cruz, que é bem perto. Mas não dá. Ele mora num puxado dentro do estacionamento, que funciona até as 20h30. Até fechar, arrumar o caixa do patrão, perderia aula.

Ele me pediu livros, adora ler e queria rever o que estudou. Como eu tinha alguns livros do Ensino Médio – de Literatura, História e Filosofia, esse último da filha de uma amiga – levei. Foi uma alegria ver a cara de Douglas ao receber o material. Merci madame, merci madame, Deus vai ver isto de perto.

É triste ver uma pessoa com capacidade para voltar a estudar, entusiasmo com a leitura e não ter tempo porque não tem hora para fechar o estacionamento.

 – Vareia muito, diz ele, às vezes passa das oito e meia. Estou cansado de rodar com os carros nesse terreno quadrado.

Quantos Douglas tem em SP? Milhões. Dei aula para um rapaz, Domingos, pra lá de esforçado e que concilia seu trabalho de motoqueiro da lanchonete bacana Joaquin’s, no Itaim, com o estudo noturno no braço social da Escola Lourenço Castanho. 

Domingos gosta muito de ler e troca livros com um amigo. O que ele lê? Descobriu Saramago, Rubem Braga, Drummond e por aí vai. Ele lê quando chega em casa, após as aulas, na madruga, e nos finais de semana aproveita para acompanhar as lições dos filhos. Seus textos são pura poesia, que contam sobre sua vida, no litoral do Maranhão.

Nesta cidade que pulsa, onde poucos têm tudo e muitos não têm quase nada, encontrar com os alunos da EJA é um prazer enorme. Estou com saudades dos alunos aplicados da noite que acordam às 5h30 da matina para pegar condução e chegar ao trabalho às oito. São muitos alunos porteiros, cabelereiras, babás, faxineiras, mecânicos, enfim uma gama enorme de profissões. Eles querem passar para outra etapa. A maioria migrantes, amam SP com toda força, agradecem à cidade que lhes deu possibilidade de ter um teto, um ganha-pão e de melhorarem um pouco de vida, coisa que se ficassem nas suas cidades não haveria qualquer chance.

E assim eu vejo o Douglas, sempre com um sorriso estampado e quando vou embora ele me diz, vai com Deus e Nossa Senhora do Suvaco Quente! Coisa da cidade que tem voz própria, que tem calor entre as pessoas e onde tudo é possível, até o impossível.

***
Marina Bueno Cardoso, jornalista, trabalhou na imprensa em São Paulo e na área de Comunicação Corporativa de empresas. É autora do livro “Petit-Fours na Cracolândia”, Editora Patuá. Publica crônicas quinzenalmente no São Paulo São que são replicadas no site literário www.musarara.com.br

 

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