Tatuadora quer transformar a vida de mulheres vítimas de violência doméstica

Cicatrizes podem não desaparecer nunca. Para mulheres que sofreram violência doméstica, guardar pela vida inteira as marcas do abuso pode ser desesperador. O “permanente”, porém, pode ter outros significados, como o que a curitibana Flávia Carvalho vem conferindo ao termo. Há dois anos, ela desenvolve o projeto A Pele da Flor, que busca transformar as cicatrizes em algo bonito, empoderador e transformador: tatuagens. Em entrevista, ela conta como está sendo essa experiência.

Como você se tornou tatuadora? Ainda existe algum preconceito contra mulheres que tatuam? 
Flávia Carvalho: Eu sempre desenhei, e quando entrei na faculdade de Ciências Biológicas na UFPR, comecei a trabalhar com ilustração científica. Meus colegas e amigos de faculdade viviam insistindo para que eu começasse a tatuar para “rabiscar a galera”. Fui aprendiz de um tatuador que me ensinou a montar uma máquina de tattoo e comecei a tatuar minhas “cobaias” da faculdade. Foi um caminho bem longo e difícil. Depois disso, trabalhei em dois estúdios de tatuagem até ter o meu próprio, hoje.

Eu não digo que as meninas tatuadoras sofram preconceito, mas a tatuagem é uma carreira dominada por homens e é muito difícil, sim, para as minas começarem. Na convenção de tatuagem aqui de Curitiba, dos mais de 150 tatuadores que estavam tatuando nos 100 stands, havia apenas eu e mais 5 meninas. Dos 32 prêmios de diferentes categorias do concurso de tatuagem, apenas eu e mais uma ganhamos. Foi muito difícil para mim ganhar respeito nesse meio, e vejo que isso acontece muito com tatuadoras iniciantes, também.

Você pode explicar um pouco mais do seu projeto? Como ele funciona? 
Flávia: A ideia do projeto é bem simples: é um serviço de tatuagens voluntárias para cobrir cicatrizes e marcas oriundas de violência doméstica e urbana, ou mastectomia. O projeto é somente meu, já que nenhum outro tatuador se interessou em participar dele. Comecei há pouco tempo, mas eu não imaginava que iria ter essa repercussão toda na imprensa. Tudo começou meio “atropelado”. Como eu disse, o serviço é 100% voluntário e o único “trabalho” que a mulher terá é escolher o desenho e ir tatuar!

De onde veio a ideia? 
Flávia: Tudo começou há uns 2 anos atrás, quando eu atendi uma cliente que queria cobrir uma cicatriz grande no abdômen. Ela me contou que estava em uma boate, um rapaz a abordou e, diante da negativa dela, ele a golpeou com um canivete. Quando ela viu o resultado da tatuagem, ficou muito emocionada e isso me comoveu muito. Fiquei com essa ideia na cabeça, de disponibilizar tatuagens gratuitas a mulheres que ficaram com cicatrizes de violência ou mastectomia, usando a tatuagem como ferramenta de empoderamento e resgate da autoestima delas. Amadureci a ideia esse ano e mandei a ideia para algumas ONGs: a Secretaria Municipal da Mulher abraçou a ideia, recebemos o apoio da fanpage da Prefeitura de Curitiba, que fez um post sobre o projeto, e ele “estourou”.

O nome é uma alusão da expressão “À flor da pele”, que é o que acontece quando passamos por uma situação muito extrema. A Pele da Flor também remete ao fato de todas nós mulheres sermos flores e merecemos ter nossas peles cuidadas e enfeitadas.

As meninas tatuadas por você recebem novas marcas no corpo: as da superação, em vez do medo. Como tem sido a recepção do seu trabalho entre essas meninas?
Flávia: O feedback que tenho recebido de mulheres contempladas pelo projeto é o mais inesperado possível. É uma sensação de carinho, acolhimento e sororidade que eu jamais imaginei. Elas me mandam mensagens de todo o país, e de fora dele; vão até o estúdio, contam suas histórias de dor e de superação, mostram as cicatrizes, envergonhadas, choram, me abraçam. Aí, pensamos no desenho e agendamos a tatuagem. Elas ficam ansiosas, otimistas. Depois da tatuagem, é maravilhoso ver como a relação delas com o próprio corpo muda, fico acompanhando elas pelo Facebook, vendo que antes elas eram envergonhadas e, depois da tatuagem, postam fotos usando vestidos, felizes, diferentes. É transformador.

Que tipo de impacto seu trabalho tem causado por aí, além das meninas tatuadas?
Flavia: Ele tem levantado toda a questão da violência contra a mulher, tanto na imprensa quanto em grupos de discussão. A intenção do projeto também era essa.

Qual foi a história que mais te emocionou?
Flavia: Todas me emocionam, mas a que mais me chocou é a de uma menina que com 17 anos namorou um rapaz mais velho, viveu meses de relacionamento abusivo e, quando quis terminar, ele marcou um encontro com ela, eles começaram a brigar, ele a esfaqueou várias vezes no abdômen e a violentou sexualmente de tal forma que ela teve laceração completa do períneo e teve que passar por cirurgias, colocar dreno e ficou vários dias na UTI. Ela é tão jovem e ficou com tantas marcas, mas o agressor é réu primário e ainda está solto.

Você trabalha com mulheres que foram agredidas. Já recebeu algum tipo de comentário machista ou ameaçador? 
Flávia: Nenhum diretamente para mim, pois homem morre de medo de mulher empoderada, né (risos)? Vi mensagens maldosas e depreciativas em comentários de algumas reportagens, mas eram tão vazias e sem fundamento (tipo de “hater” e “troll” mesmo) que não me incomodou.

Nas suas palavras, qual é a importância de um trabalho como o que você faz?
É um grãozinho de areia num mundo de coisas que ainda temos que fazer. Em relação à proteção da mulher contra a violência, ainda estamos engatinhando.

Algum plano para o futuro? Parcerias com casas de proteção à mulher, talvez?
Flávia: Eu e a Secretaria Municipal da Mulher pretendemos fazer uma parceria com a Delegacia da Mulher para oferecer o serviço do projeto de forma mais “ativa” diretamente a mulheres que vão até lá denunciar seus agressores. Também irei participar da Jornada Nacional da Mulher, em novembro, e no Outubro Rosa, em parceria com o Hospital Erasto Gaetner, que atende a mulheres que fazem mastectomia pelo SUS.

Fonte: j / Projeto experimental de alunos de jornalismo da Faculdade Cásper Líbero.

 

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