Um enigma chamado Geraldo Vandré

Aqui no Brasil, a literatura tem dois exemplos clássicos, Rubem Fonseca e Dalton Trevisan: eles não dão entrevistas, tratam de viver numa espécie de clandestinidade palpável e visível. Ou quase. Tratam de caminhar secretamente em suas cidades, o Rio e Curitiba, mantêm contato permanente com amigos mais que discretos, querem mesmo é sumir na poeira das ruas e no breu das noites.

A canção popular tem Geraldo Vandré. Há, porém, diferenças importantes. Vandré não se acanha de aparecer em público, confiando que pouca gente saberá quem ele é ou foi. E Vandré não mostra o que produz. Para liquidar o assunto e destroçar comparações, ele mesmo diz que não existe: quem existe é o advogado aposentado Geraldo Pedrosa de Araújo Dias. Afirma que Geraldo Vandré morreu em 1968: “Era só um pseudônimo que eu usava”.

Pois esse pseudônimo traçou não apenas uma carreira especialmente sólida na canção popular brasileira como construiu uma figura que há uns 50 anos alcançou píncaros de luz para depois mergulhar numa névoa densa, carregada de perguntas sem resposta e mistérios sem solução.

Ao seu redor se construiu um halo de lendas e mistérios, que vão de sua esdrúxula volta ao Brasil em 1973, depois de quatro anos de exílio, à sua súbita reverência à Força Aérea – logo ele, que foi perseguido pela ditadura, proibido, exilado, humilhado.

Semelhante figura, com um passado estelar e uma trajetória pontilhada de enigmas e contradições, aos poucos foi sendo esquecida. Mas, já que de contradições se trata, ao mesmo tempo continua despertando a curiosidade não só de seus contemporâneos, mas de quem não viveu aqueles tempos de opressão e asfixia.

O jornalista Vitor Nuzzi, por exemplo. Quando ele nasceu em São Paulo, no ano de 1964, Vandré já tinha uma trajetória consolidada. Nuzzi tinha 4 anos quando tudo foi varrido pelo vendaval de um dezembro medonho, o de 1968. Quer dizer: nem de longe viveu o auge da carreira de Vandré e teve a sorte de não ter respirado tanto aqueles ares de chumbo: aos 4 anos de idade, o coração da infância costuma ser manso.

A certa altura da vida, por volta de 1985, e fazendo jus ao ofício de repórter, Nuzzi começou a descobrir Geraldo Vandré. Esse interesse resultou numa pesquisa de anos e anos, na feitura de mais de uma centena de entrevistas, e tudo isso desaguou nas 300 e tantas páginas do livro “Geraldo Vandré – Uma Canção Interrompida”.

Ao reconstruir meticulosamente a trajetória de Vandré, Nuzzi recria, em detalhes, o panorama e a atmosfera que o país viveu ao longo de décadas, ou seja, de meados da década de 50 até hoje, passando pelo ponto culminante, dezembro de 1968, quando o regime militar decretou o Ato Institucional nº 5. Com esse AI-5 decretou-se também o fim de uma etapa, o início de outra e, de alguma forma, pelo menos segundo a opinião de Geraldo Pedrosa de Araújo Dias, a morte de Geraldo Vandré.

Como seria previsível, Vandré se negou a prestar depoimentos para Nuzzi. Muitos contemporâneos dele também. Há, porém, depoimentos preciosos e esclarecedores, que vão de Chico Buarque, Caetano Veloso e Gilberto Gil, a parceiros importantes de seu trabalho, como Luiz Roberto Oliveira, autor da emblemática melodia de “Tristeza de Amar”.

Garimpando antigas declarações de Vandré, Nuzzi encontrou pepitas raras. Especialmente esclarecedora, principalmente para quem não viveu aqueles tempos ou, se viveu, se esqueceu, a reconstrução do cenário brasileiro é séria e meticulosa. Mais que fazer uma análise daquele panorama, a intenção do autor foi situar Vandré no ambiente que o país habitava. E isso foi feito de maneira eficaz.

Existem apenas cem exemplares impressos de “Geraldo Vandré – Uma Canção Interrompida”. Nenhum deles foi vendido. Cada um foi pago pelo próprio autor. Afinal, havia uma legislação que espantava editores.

Bem, essa lei caiu. E o livro, que certamente chegará às livrarias, é um retrato respeitoso e pungente de uma das figuras centrais da Música Popular Brasileira da segunda metade do século XX. É uma forma de resgatar a figura de Vandré, a memória coletiva e, principalmente, de deixar claro que a própria obra dessa figura controvertida e misteriosa desmente uma de suas frases contundentes, dita ao repórter Geneton Moraes numa memorável entrevista: “A arte é inútil. Mas eu consegui ser mais inútil que qualquer artista”. 

Conhecer sua vida e sua trajetória, conhecer sua obra, é constatar o contrário. Não só a arte é útil como, acima de tudo, necessária. Da mesma forma que é útil e necessário esse artista, que ao negar que está vivo nega o óbvio. 

Por Eric Nepomuceno, para o Valor.

“Geraldo Vandré – Uma Canção Interrompida” – Vitor Nuzzi. Scortecci Editora 372 págs., preço não definido / AA+

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