E o tempo passa, o ar vai esquentando (o mar, não…), o sol escalda as areias e o verão português mostra toda a sua força. Praias cheias, suor pelo rosto, dias abafados até nos fazem sentir saudades daquele clima mais “fresquinho” de janeiro. Mas nada de vir o friozinho de novo. Nos bares, no táxi, no trabalho, a conversa é sempre a mesma. O mês de setembro deste ano foi o mais quente já registrado na história, desde que o Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA) começou a fazer o acompanhamento oficial das temperaturas. Já era para estar mais frio nessa época, sem dúvida.
Ouvimos como quem tem pouco a dizer, ainda, sobre o tempo por aqui. Mas sempre cabe um genérico “o tempo tem ficado doido mesmo. No Brasil é igual”. E vai saber se a culpa não é nossa e de todos os outros brasileiros que desembarcaram recentemente em Portugal e vivem reclamando do frio. Se Deus realmente for brasileiro, não seria tão absurdo dar um jeito de o verão se estender até novembro, quem sabe dezembro…
Mas eis que abrimos o jornal essa semana, já sentindo que um ventinho frio começava a gelar a orelha, e damos de cara com a dura realidade: “Massa de ar polar vinda da Islândia traz frio e vento forte, com temperaturas que chegarão a zero grau em alguns pontos do país”. Definitivamente, Deus deu um tempo nessas questões climáticas e não sai mais em nossa defesa. Aliás, vendo o que parte daquela turma do bem, da família e dos bons costumes tem propagado e falado em nome Dele do lado de lá do Atlântico, eu também já teria desistido. Mas esse é outro assunto…
Também começa a cair neve na Serra da Estrela, aparecem as deliciosas castanhas assadas nos carrinhos, os doces de ovos e amêndoas bem calóricos parecem não assustar tanto, o Cozido Português ganha mais cardápios (ou ementas, como se diz por aqui), o bom vinho esquenta, as roupas de verão vão para caixas no alto do armário, saem os casacos e cachecóis. Enfim, o outono, com as temperaturas já com cara de inverno, dá novas cores, sabores, aromas e hábitos para o país. É muito bom, admito.
E quando já estou aqui escrevendo com uma chávena (ops, xícara) de chá quente ao meu lado, um novo sopro de calorzinho aquece meu coração, que ainda oscila entre as delícias do inverno e os saudosos prazeres das caminhadas a beira mar de chinelo em agosto e setembro. O responsável por isso é o São Martinho, personagem que vim a conhecer aqui, provavelmente por pura ignorância minha.
A história é do século IV e fala de um soldado e cavaleiro, Martinho, que regressava para casa quando, durante uma tempestade, cruzou com um mendigo que lhe pediu esmolas. Sem dinheiro ou comida, o nobre militar deu a única coisa que tinha: retirou o manto que trazia preso nas costas e o aquecia, cortou-o ao meio e ofereceu ao pedinte. Neste exato momento, a tempestade desapareceu e o sol começou a brilhar. Martinho de Tours abandonou a carreira militar para se tornar um dos grandes religiosos a espalhar a fé cristã na Europa. Morreu e foi sepultado em 11 de novembro na cidade de Tours, na França. Hoje, é um dos santos mais populares do velho continente, protetor dos alfaiates, soldados, cavaleiros e pedintes. E por causa do que se considerou um milagre, comemora-se, no próximo dia 11, o “Verão de São Martinho”.
Crendo ou não no milagre de São Martinho, o fato é que nos dias que antecedem a data do então encontro do cavaleiro com o pedinte o sol costuma dar as suas caras e a temperatura se eleva, quase criando um verãozinho no meio do frio outono. Reza a tradição que os dias devem ser comemorados com castanha assada e com vinho novo, produzido com a colheita do verão anterior. Uma série de ditos e provérbios populares também trazem referências às tradições desta época: “No dia de São Martinho, vai à adega e prova o vinho”, “No dia de São Martinho, castanhas, pão e vinho”, “Dia de São Martinho, lume, castanhas e vinho”.
Já virei devoto. Semana que vem asso as castanhas, abro o vinho, tiro a bermuda, o chinelo e a camiseta do alto do armário e vou curtir o “Verão de São Martinho”. Obrigado Portugal por mais essa!
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Marcos Freire mora com a família em Ovar, Portugal, pequena cidade perto do Porto, conhecida pelo Pão de Ló e pelo Carnaval. Marcos é jornalista, com passagens pelas principais empresas e veículos de comunicação do nosso país. Escreve quinzenalmente no São Paulo São.