Verona invadida por carrinhos de rolimã, estilingues e bolas de gude

Conhecida por ser o cenário escolhido por William Shakespeare para a tragédia Romeu e Julieta – e por lucrar bastante com isso –, Verona, no norte da Itália, atrai milhares de turistas anualmente também por sua arquitetura, que inclui uma arena do século 1. Mas, pelo menos por quatro dias, a cidade vive ares, digamos, menos dramáticos.

Durante o Festival Internacional de Jogos de Rua, o Tocatì, o romantismo abre espaço para estilingues, carrinhos de rolimã, bolinhas de gude e corridas de chapinha (aquelas com tampas de garrafa).

Praças, ruas, calçadas, museus e até mesmo as margens do rio Ádige e os pátios internos de palácios e igrejas tombados são palco do evento, reconhecido pela Unesco como patrimônio imaterial da humanidade.

A edição deste ano começou na última quinta, vai até o domingo e espera atrair aproximadamente 300 mil pessoas. São 220 mil metros quadrados – o equivalente a cerca de 20 campos de futebol – tomados por brincadeiras de rua, parte delas populares em todo o mundo e outras já tidas como mortas.

 

Na corrida de chapinhas, “carrinhos” (na verdade, tampinhas de garrafa) movidos a batidas com os dedos correm em pista 
de papelão ou areia; trajeto pode ter viadutos, túneis e outros obstáculos. Foto: Divulgação.

Algumas delas têm laços com a história. Um exemplo são as pernas de pau, chamadas ali de “trampol”. No passado, eram usadas por agricultores na travessia de uma zona de pântano em Schieti, na Toscana, centro da Itália. Hoje, são celebradas anualmente na mesma localidade, entre o fim de abril e o começo de maio, com desfiles e brincadeiras.

Paolo Avigo, presidente da Associação dos Jogos Antigos, organizadora do evento, conta história semelhante sobre os carrinhos de rolimã: “Os filhos de famílias ricas, dos antigos romanos, já faziam brinquedos semelhantes, puxados por animais domésticos na tentativa de imitar as corridas de bigas”.

Homens em carrinhos de rolimã (Foto: Divulgação/Tocati)

Carrinhos de rolimã são normalmente feitos com madeira reciclada e rolamentos achados em oficinas mecânicas. Foto: Divulgação.

Bolinhas de gude são usadas em um palco teatral – na peça Um Saco de Bolinhas de Gude, baseada no romance de Joseph Joffo – para ajudar a contar a história de duas crianças que fogem da perseguição nazista na França.

“Temos registros de bolinhas de terracota e de pó de mármore já nos tempos dos egípcios”, conta Avigo.

Coisa de gente grande

 

Curiosamente, o evento de Verona é dedicado ao público adulto. A ideia é reatar os laços com a infância e, se possível, apresentar as brincadeiras aos filhos e netos a tiracolo – menores de 12 anos só podem participar caso estejam acompanhados por um responsável.

 

Bolas de gude em Verona | Foto: Guilherme Aquino/BBC BrasilBolinhas de gude podem ser jogadas em praças e areais nas margens do rio; além disso, são figuras centrais de peça sobre crianças

fugindo da perseguição nazista. Foto: Guilherme Aquino / BBC Brasil.

Os jogos são o fio condutor de todo o festival, que inclui apresentações de dança, teatro e cinema e exposições. Há ainda laboratórios didáticos nos quais as crianças aprendem a construir seus próprios brinquedos.

Cada edição do evento, que é anual, homenageia uma realidade local, seja nacional ou internacional. Em 2011, o Brasil esteve presente com um grupo de capoeira. Neste ano, o destaque é a região espanhola da Catalunha.

Uma instalação criada por Victor Ténez Ybern, arquiteto e paisagista da Universidade Politécnica da Catalunha, em conjunto com o Laboratório de Arquitetura Contemporânea de Verona, trouxe seis câmaras de ar de pneus de caminhões à beira do rio Ádige.

 

Torre humana | Foto: Tina Weinreben

Catalães criaram a torre humana “Castells”, feita com centenas de pessoas;  italianos tem versão que roda como peão sem deixar ninguém cair.
Foto: Tina Weiberg.
 

A ideia é remeter às brincadeiras na água. O nome do trabalho, “O Retorno”, refere-se à ideia de se voltar a fazer uso recreativo do rio. Porém, como o pedido para usá-las no Ádige foi negada, a brincadeira ocorre mesmo em terra firme.

A primeira edição de Tocatì ocorreu em 2003, e teve seu principal fruto colhido seis anos depois. Moradores de um bairro, o Borgo Venezia, conseguiram transformar uma rua em campo de recreação permanente, na qual carros não circulam.

“(A rua é) onde gente do Sri Lanka joga críquete ao lado de italianos que batem uma pelada”, contou à BBC Brasil Giuseppe Giacon, vice-presidente da Associação de Jogos Antigos.

 

Boia à beira do rio Ádige, em Verona | Foto: Guilherme Aquino/BBC Brasil

Instalação com boias à beira do rio Ádige seria usada na água, mas autorização acabou negada. Guilherme Aquino / BBC Brasil.
 
Brincadeira regrada

É um festival de brincadeiras, mas nem por isso faltam regras. Há “conceitos-padrão” que devem ser seguidos para que elas possam fazer parte do evento.

Segundo os organizadores, um jogo tradicional deve refletir as raízes de uma determinada área geográfica, priorizar mais o aspecto lúdico e menos o competitivo, estar bem disseminado em uma comunidade e, entre outros, ser uma atividade cada vez mais rara, ou seja, que precisa ser preservada.

“No jogo tradicional, compartilha-se a presença das pessoas. Há um grande respeito pelo adversário, até porque, sem ele, não existe jogo”, explica Giacon.

A tecnologia é usada apenas para divulgar o evento. Mas, décadas após a invenção do videogame, o festival se mantém firme na decisão de não abrir espaço a esse tipo de divertimento.

“Não interessa tanto com qual instrumento se vai brincar, jogar. E sim o que está por trás desse instrumento e, no caso (do videogame), há um grande negócio. Não podemos aceitar uma brincadeira na qual seja preciso investir dinheiro para tê-la”, diz o organizador.

Guilherme Aquino de Verona para a BBC Brasil

 

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