Zumbis com celulares nas mãos

Ele olhava fixamente para aparelho. Ao mesmo tempo, teclava, passava o dedo na tela, falava consigo mesmo, e parecia esperar do celular uma resposta para algum problema muito grave, urgente mesmo, a ponto de ignorar a Barão de Itapetininga, os vendedores, os homens-sanduíche, os cantores, e eu.

Quanto mais intensamente segurava o celular, mais rápido rápido andava em minha direção. Não sei porque, mas resolvi que não iria sair da frente. Talvez achasse ridículo um adulto andar sem olhar para seu caminho, talvez estivesse curioso para ver até ver onde ele iria.

Pois ele continuou andando e olhando para o celular até que, a uns poucos centímetros de mim, estancou. Olhou-me irritado, como se eu tivesse invadido seu mundo virtual. Parecia querer dizer algo, mas desistiu e olhou para seu celular. E seguiu em frente, embora, resmungando algo incompreensível em língua de zumbi.

Isso anda acontecendo em toda a parte. Todo psicólogo, antropólogo, sociólogo já estudou e escreveu sobre o celular e a nova sociedade contemporânea. Como, ao mesmo tempo em que ele nos conecta com quem está longe, nos afasta de quem está perto. Como, numa sala de espera, a pessoa fica acometida de uma solidão invencível, em meio à multidão conectada.

Pensando nisso, num vagão do metrô, resolvo olhar para as telas para descobrir o que pode ser tão absorvente e urgente. Vejo joguinhos. Aparentemente, há bolinhas coloridas que encostam em outras bolinhas e que depois explodem. Vejo caixinhas de diálogos recheadas de figurinhas, corações, carinhas. Vejo fotos, muitas fotos, vídeos de gatos e pandas, e ouço música que vaza dos fones.

Concluo que não há nenhuma urgência, há apenas o vício.

Essas pessoas sobem as escadas rolantes olhando para a tela e tropeçam no último degrau. Elas chegam a uma esquina e não conseguem decidir se seguem ou se param. Outras estancam na frente do caixa e ficam boquiabertas diante da pergunta: “quer nota fiscal?”. Vi uma moça numa fila da farmácia. Acho que ela ainda está lá, parada, lambendo a tela com o dedo, enquanto a atendente tenta fazê-la lembrar do código do programa de fidelidade.

Bodegraven, uma cidade na Holanda, resolveu ajudar os pedestres distraídos com seus aparelhos, a não morrerem atropelados. Na beirada da calçada, instalaram uma luz forte, no chão, que alerta para o perigo.

Faixas de luz LED instaladas em pavimentos na cidade holandesa de Bodegraven, na esperança de chamar a atenção de pedestres olhando para seus celulares. Foto: Divulgação.

Luzes LED no pavimento, orientam e alertam usuários de telefones ‘zumbis’. Foto: Divulgação.O problema maior, porém, é quando a pessoa que olha o celular está dirigindo.

Entre a maquininha de 200 gramas e a máquina de uma tonelada, o sujeito escolhe a primeira.  E o carro fica na mão de um zumbi.

Alguns, em estado mais avançado de dependência, começam a teclar, antes do carro parar totalmente e não vêem a faixa, os pedestres, os outros carros. Só a tela, com o monstrinho que come as frutinhas coloridas, ou a mensagem com o homenzinho amarelo sorrindo.

E quando batem o carro, ou atropelam alguém, não se dão conta de que cometeram um crime. Afinal, eles tinham que abrir o vídeo dos patinhos que atravessam a rua em Los Angeles pois nada parecia ser mais importante naquele momento.

***
Mauro Calliari é administrador de empresas, mestre em urbanismo e consultor organizacional. Artigo publicado originalmente no seu blog Caminhadas Urbanas.

 

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Uma resposta

  1. O celular substituiu praticamente todos os meios de comunicação padrão, como o telefone, o e-mail e o skype. Ora, o celular substitui satisfatoriamente esses outros meios de contato. Ele é mais completo e proporciona mais agilidade na comunicação e na resposta.
    Pelo fato de ter se tornado o meio quase absoluto de conversa, a falta temporária do aparelho causa transtorno, prejuízos e estressa mais do que congestionamento.
    Por ser o meio principal de contato da pessoa física e no meio corporativo, o celular também passou a facilitar a traição conjugal e o crescimento da criminalidade.
    Mas o grande problema é que mesmo as pessoas do bem estão colocando o meio de comunicação da modernidade acima da segurança pessoal e da segurança dos outros.

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