Em vermelho, a Favela Jardim Panorama. Em azul, o complexo do Parque Cidade Jardim. Reprodução.
Continuando o tour gastronômico, a segunda opção é o Food Hall, espécie de Praça de Alimentação 2.0, onde é possível fazer compras de produtos chiques ou almoçar em um restaurante a la carte. Para chegar lá, L.B. tem que entrar na fila de um carrinho de golfe que faz a ligação subterrânea entre o Corporate Center e o estacionamento do shopping. Dependendo do horário, a fila é tão grande que o pessoal opta por fazer o trajeto de alguns metros de túnel a pé. Mais cinco lances de escada rolante passando pelos corredores do shopping e pronto: assim, o Food Hall, para eles, virou Food Hell. A terceira alternativa é o Divino Fogão, que ainda não ganhou apelido, mas que poderia muito bem ser chamado de Divino Porão. O restaurante por quilo fica no segundo subsolo do shopping, num anexo sem janelas dentro do estacionamento. Haja pulmão! A última opção é o refeitório dos funcionários que, localizado ao lado do Divino Fogão, oferece um prato feito diário e microondas para esquentar marmita. Tudo branco, num estilo que lembra os cenários dos refeitórios de presídios dos filmes americanos.
Para o psicanalista Christian Dunker, autor do livro Mal-estar, sofrimento e sintoma, que estuda a vida em condomínio no Brasil contemporâneo, o projeto do restaurante dos funcionários no subsolo está na arqueologia do condomínio. “Em lançamentos como Alphaville [condomínio fechado da década de 1970, em São Paulo], por exemplo, a ideia era que os funcionários desaparecessem. Ao entrar pela porta dos fundos, usando uniformes que não os diferenciassem, eles fariam as coisas funcionarem sem sequer aparecer”, comenta Dunker. Curiosamente, dentro do shopping, a sensação é de que os corredores largos com lojas milionárias são habitados apenas por seguranças, faxineiros e vendedores. Num dia de semana, pouco se veem clientes e compradores. Um dos diretores do documentário O Castelo, que narra um dia no complexo, Guilherme Giufrida, confirma a sensação. “Na hora de montar o filme, optamos por contar a história a partir dos funcionários daquele local, que são as pessoas que você mais encontra pelos corredores”, conta.
Inaugurado em 2008, quando foram lançados o shopping e as torres residências (o conjunto comercial só viria em 2012), o Parque Cidade Jardim é um projeto da construtora JHSF, especializada em empreendimentos de luxo. O modelo do complexo paulista já foi exportado para outras capitais, como Salvador, onde o Horto Bela Vista funciona numa lógica bem semelhante. E, recentemente, projetos de expansão para um terreno em frente do Parque Cidade Jardim foram revelados pelo portal UOL. Pouco acessível, controlado por um esquema de segurança intenso, o empreendimento é constantemente criticado por urbanistas por ser um enclave fechado dentro da cidade. “A presença de algo assim destrói os tecidos urbano e social da cidade”, diz Maria de Lourdes Zuquim, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP.
Entrada do Restaurante do Silvio. Imagem: reprodução de reportagem de TV.
É de lá, contudo, que L.B. e outros funcionários de escritórios do Corporate Center saem rumo à favela Jardim Panorama diariamente. No caminho, descem pelo elevador inteligente de uma das torres comerciais – em que só é necessário digitar, ainda no lobby, o andar desejado –, passam pela catraca eletrônica do térreo e dão num átrio que faz as vias de via privada. Contornando um laguinho artificial (com direito a pontezinha e tudo mais), eles seguem até o elevador que conduz ao nível da rua, não sem antes passar por outra catraca eletrônica. Já na pequena viela da favela, formam-se filas na porta dos restaurantes. Tem de tudo: publicitários com barbas cerradas milimetricamente aparadas, consultores metidos em roupas sociais e sapatos lustrosos, e faxineiros em seus uniformes acinzentados.
O cenário da favela é o habitual. Sobrados mais sólidos de alvenaria dividem espaço com construções esquálidas de dois, três, quatro andares. Do lado de fora das casas, mulheres estendem roupas em varais improvisados, crianças em férias escolares correm para cima e para baixo, cachorros vadeiam em busca de sombras escassas. Em meio a tudo isso, passam cozinheiras carregadas de panelões de feijão, arroz e carne de porco em direção a um dos três restaurantes: o do Fabinho, o da Lu e (ou) do Silvio. Cada um deles recebe cerca de 60 clientes por dia e, com pouco tempo de atividade, já amealham o suficiente para pagar as contas e guardar um pouquinho no final do mês.
Entrada do Restaurante do Fabinho. Imagem: reprodução de reportagem de TV.
Já mais para frente, onde a viela se dobra numa curva à direita, está o restaurante do José Silvane, 44 anos, também conhecido como Silvio. Ele é o símbolo do migrante empreendedor. Em pouco tempo de conversa já está dizendo que chegou em São Paulo em 1991, vindo do Maranhão, que trabalhou como encanador durante muitos anos, até abrir uma padaria que era a menina dos seus olhos, na favela Real Parque, ali perto da Panorama. “Eram 3 mil pãezinhos no balcão todo dia, mas aí veio o incêndio e levou tudo.” Numa busca rápida na internet, é possível encontrar uma reportagem da TV Gazeta, de 2010, em que Silvio aparece aos prantos na frente das câmeras, porque o fogo, iniciado em alojamentos provisórios – que, no entanto, vinham cumprindo essa função há anos –, lambeu todo seu negócio. Desde então, ele tenta se reerguer: sua preocupação agora é pagar o aluguel, mas, principalmente, dar conta dos empréstimos que fez para botar o restaurante de três andares (o mais antigo da viela) de pé.
De comum, Silvio, Lu e Fabinho têm uma expressão cansada de quem vive só para o trabalho. No papo-rápido, apressado pelo entra e sai de clientes, também é clara a importância do Parque Cidade Jardim em suas vidas. Se, por um lado, ele viabiliza o negócio, por outro, é fonte de uma preocupação meio velada, da qual falam usando meias palavras. É que recentemente, como contam, algumas casas da favela foram compradas por um valor que varia entre 50 e 70 mil reais e demolidas pela administração do empreendimento, sem que, no entanto, nada fosse feito no local. Por ora, as demolições foram interrompidas. Mas sabe-se lá quando vão voltar? “Não é um termo acadêmico, mas o que acontece é que o mercado imobiliário vai literalmente comendo pelas bordas. O que acontece na Panorama também acontece em Paraisópolis ou no Jaguaré. A favela existe sob um consentimento assistido, um dia a pressão econômica acaba com ela”, comenta a urbanista Zuquim. A JHSF mesmo prefere não comentar o assunto, não diz que não e nem que sim.
Por enquanto, a favelinha, instalada ali desde a década de 1950 – muito antes de a região do Morumbi deixar de ser um matagal fechado e desvalorizado para passar a ser um dos m² mais caros da cidade – continua lá. Menor, é verdade, mas lá. Vive uma espécie de frágil mutualismo que acaba por expor o mal-estar de se trabalhar e viver em um complexo como o Parque Cidade Jardim. Para Dunker, comer na favela é praticamente um exercício de resistência não planejado dos funcionários do complexo. “Não é só porque é mais barato, mas é porque a vida nesses locais é de mentira, é tudo regulado, tudo pelo manual. As pessoas têm vontade de experiências mais reais, mais informais, por isso querem sair de lá, ao menos no horário do almoço”.
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André de Oliveira no El País, Brasil.