As cidades portuguesas amigas das bicicletas

Um recente indicador (2018) reforça, de certa forma, o meu ponto: o município português mais “amigo” da bicicleta é Murtosa, cidade vizinha de Ovar e cortado pela Ria de Aveiro. Em Murtosa, a bicicleta responde por quase 17% de todas as deslocações feitas pela cidade para ir ao trabalho ou escola, o maior índice de Portugal. O primeiro Bike Friendly Index – BFI (http://www.bikefriendlyindex.com/portugal-continental/) é um ranking nacional, preparado a partir de 12 critérios em cinco dimensões, entre elas a topografia, a infraestrutura, e os projetos/investimentos do poder público. Murtosa tem a seu favor a topografia, pois é uma cidade plana como Ovar.

Na segunda posição aparece Lisboa, mesmo que as bikes respondam por menos de 0,5% das deslocações na cidade. A vice-liderança veio mais pela infraestrutura disponível (algumas dezenas de quilómetros de ciclovias) e o grande investimento em projetos de mobilidade. Ou seja, o índice aponta se a cidade está preparada para as bicicletas e os ciclistas, ainda que as pedaladas não ocupem um lugar de destaque na matriz de todas as modalidades de transporte disponíveis. 

O estudo também identificou uma importante diferença: as mulheres são as principais usuárias de bike em Murtosa (53%), enquanto são minoria em Lisboa (18%). Como referência, a média nacional portuguesa de deslocação em bicicleta é de 1%, enquanto no restante da europa esse índice supera os 7%.  Em Portugal, sobre os selins há muito mais homens (85%) do que mulheres (15%), resultado, na avaliação do estudo, da preocupação com a segurança, ou, neste caso, a falta dela. Diante destes dados, Murtosa é realmente uma grande exceção. Por outro lado, pode não ser tão justo comparar uma cidade com pouco mais A visão do Oceano Atlântico no caminho do Porto para Ovar.de 10 mil habitantes (2011) e distâncias pequenas com uma metrópole como Lisboa. Para evitar essas distorções, o BFI também fez o ranking apenas das maiores cidades. Quando analisadas as capitais de distrito (algo como os nossos estados), Lisboa aparece em primeiro lugar, seguida por Porto e Aveiro, praticamente empatados na segunda posição. Aveiro, aliás, é o distrito a qual pertence a cidade de Murtosa. Os municípios de Aveiro, Porto e Lisboa, vale dizer, tem feito grandes investimentos em mobilidade e tecnologia, como já escrevi em outros artigos. A liderança, portanto, não vem por acaso e não é apenas uma questão de ser uma cidade plana (alguém acha que Porto e Lisboa tem topografia favorável para as pedaladas?). A pior capital é a cidade de Vila Real. Ao todo, Portugal contava com quase mil quilômetros de ciclovias na época do estudo, número que vem crescendo continuamente e que deverá chegar a 10 mil quilómetros até 2030, com um investimento de mais de 300 milhões de euros do programa Portugal Ciclável.A Ria de Aveiro.

O ranking português segue o modelo do Copenhagenize Index (https://copenhagenizeindex.eu/about/the-index): o índice global realizado a cada dois anos, desde 2011, e que aponta as cidades mais amigas da bicicleta em todo o mundo. Os dados de 2019 colocam Copenhagen no topo da lista, posição que vem mantendo nos últimos anos, assim que ultrapassou Amsterdam, em 2015, que ainda mantém a segunda posição, seguida por Utrecht, também na Holanda. A diferença nos indicadores de uso de bicicletas em relação às grandes cidades portuguesas, como Lisboa e Porto, ambas com menos de 0,5% é abismal: na capital dinamarquesa, mais de 60% de todos os trajetos para a escola ou trabalho são percorridos de bicicleta. Os dinamarqueses pedalam quase 1,5 milhão de quilômetros todos os dias. Mesmo Murtosa ainda precisa pedalar muito para atingir esses impressionantes dados globais.

Ah, e Ovar? Não poderia deixar de falar da minha cidade, que está acima da média nacional portuguesa em todas as cinco dimensões do BFI, com a pontuação 9 (no máximo de 10) na que avalia a topografia (declives/aclives), por exemplo. Ou seja, pedalar por aqui é uma “baba” mesmo. Nas últimas semanas, aliás, encarei dois percursos de bike que há tempos vinha querendo fazer, sempre tendo Ovar como referência. Este é um dos “atrativos” da pequena cidade mais conhecida pelo Carnaval, pelo pão de ló e pela profusão de casas com fachadas azulejadas: estamos praticamente no meio do caminho entre Porto e Aveiro, o que nos torna uma parada quase obrigatória, principalmente para adeptos do cicloturismo. Alemães, holandeses e franceses, principalmente, pegam voo até o Porto, onde trocam as asas pelas rodas raiadas. De lá, serviços de transfer levam as malas para os hotéis, que já esperam os ciclistas ao longo do trajeto. A primeira parada desta turma em direção ao sul costuma ser Ovar, onde dormem no hotel em que trabalho e seguem para Aveiro. Converso com muitos casais e grupos de amigos, turma já na faixa dos 40, 50 e até 60 anos de idade, mas com disposição de dar inveja aos mocinhos. Chegam encantados com o trajeto do Porto até Ovar, com as praias, o visual, as pistas demarcadas. Alguns mais empolgados ainda vão adiante depois de chegarem em Aveiro, pedalando até Coimbra ou mesmo Lisboa, bem mais adiante.

Uma breve parada em Torreira, no caminho de Aveiro para Ovar

Eu ainda não fui tão longe, tampouco precisei de carro de apoio para as malas, mas fui me aventurar ao norte, direção Porto, e depois ao sul, sentido Aveiro. Para o Porto, bike no trem até lá e retorno pra casa pedalando. Em pouco menos de 50 km, partindo do Cais de Gaia, passei pela foz do Douro e vim margeando as praias, com paradas pelo caminho pra curtir o dia lindo. Vale cada volta no pedal. Afurada, Madalena, Valadares, Francelos, Capela do Senhor da Pedra, Granja, Espinho, Esmoriz, Cortegaça, Maceda, Furadouro… Às vezes perto do mar, às vezes em passadiços ou ainda percorrendo pistas exclusivas para as bikes no meio de florestas de pinheiros. No outro sentido, mais uma aventura: de trem até Aveiro, para, a partir de lá, vir subindo para casa, com direito a atravessar a Ria de Aveiro em ferry boat e percorrer as praias de São Jacinto e Torreira. Outros quase 50 km, considerando os desvios que fui fazendo para intercalar trechos mais juntos ao mar ou mais perto da Ria de Aveiro. 

Em pouco menos de 50 km, partindo do Cais de Gaia, passei pela foz do Douro (foto) e vim margeando as praias, com paradas pelo caminho pra curtir o dia lindo. Foto: Marcos Freire.

Estes dois passeios são apenas dois pequenos exemplos do que a bicicleta nos permite fazer aqui na terrinha e do potencial que o país tem para, ao menos, chegar à média europeia de uso da bicicleta.  O curioso, porém, é que Portugal é um dos maiores fabricantes de bicicletas da Europa e igualmente um dos líderes na exportação. Grande parte das bicicletas que circulam em cidades que estão entre as Top 20 do ranking dinamarquês, como Espanha, França e Itália, são “made in Portugal”. Quase 80% do que é montado por aqui atravessa as fronteiras. Ou seja, os portugueses não pedalam, mas as bicicletas portuguesas rodam… Se as bicicletas portuguesas falassem, certamente diriam “vocês não me querem, mas tem quem queira”

Felizmente, as coisas começam a mudar e as bikes vem ganhando espaço. Semanas atrás, por exemplo, uma importante marca de bicicletas escolheu Ovar e o “meu” hotel para o evento de lançamento de uma nova linha de bicicletas para cicloturismo. Durante alguns dias, técnicos de vários países fizeram test-drives, avaliações e participaram de palestras técnicas sobre as novas bikes, com direito a muita pedalada por Ovar e pelos arredores da Ria de Aveiro.

Quem sabe logo poderemos dizer “aqui se faz, aqui se pedala…”. Fica esperta Copenhagen…

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Marcos Freire mora com a família em Ovar, Portugal, pequena cidade perto do Porto, conhecida pelo Pão de Ló e pelo Carnaval. Marcos é jornalista, com passagens pelas principais empresas e veículos de comunicação do nosso país. Escreve quinzenalmente no São Paulo São.

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