Ontem, por exemplo, ao fazer a caminhada habitual em torno do quarteirão para movimentar o esqueleto – já que tenho saído pouco de casa – lembrei a frase de meu pai. “Chuta a Lua, chuta a Lua”.
Era a maneira que ele achava de corrigir um hábito que eu trouxera, não me lembro de onde, nem quando, de pisar sempre com a ponta do pé direito. Chutando a Lua, eu naturalmente iria pisar primeiro com o calcanhar.
Hoje, 79 anos depois, eu sou capaz de reconstruir – pelo menos eu imagino que tenha sido assim – o que motivava meu pai a viver me recomendando para “”chutar a Lua”.
Ainda criancinha sofri um ataque de poliomielite. Quis o destino que as inevitáveis sequelas – ainda não havia sido descoberta a Sabin – fossem mínimas, quase imperceptíveis. Uma delas era arrastar um pouco o pé direito. Não que me incomodasse. Jogava futebol com a molecada e ignorava a história da pólio.
Até porque, poliomielite era palavra proibida em casa. Minha mãe proibia, assim como a palavra “lepra” (ou seja, hanseníase) e, alguns anos mais tarde, câncer. Era sempre “aquela doença”, fosse qualquer uma das três.
Aos sete anos passei a fazer fisioterapia, mas ninguém jamais mencionou a palavra “pólio”. Fiz até os 15, 16. Melhorei, passei a pisar direito, ou quase. Aos 55, as sequelas de um AVC agravaram exatamente meu lado direito, restringindo o movimento da perna e do ombro e do braço. De novo, fisioterapia.
Agora parei…E de repente me volta a lembrança do “chuta a Lua”, Veio para ficar até o fim.
Se tivesse mais tempo, talvez viesse a caminhar normalmente, sem precisar de bengala ou de mais fisioterapia. Vejo, nítida a figura do meu pai, dizendo “chuta a Lua, filho”, e respondo: estou chutando, pai…estou chutando.
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Tão Gomes Pinto é jornalista e escritor. Atuou nos principais veículos da imprensa.