Em São Paulo, muita coisa começa em pizza

Uma cultura gastronômica que se enraizou nos hábitos de mesa, com direito a variações extravagantes e a rituais categóricos. Por exemplo, alguém aí sabe explicar por que, em São Paulo, a pizza só desperta o apetite coletivo do cair da noite em diante? Qual é a lei degustativa que impede de se comer pizza no almoço de uma segunda-feira?

O legado original dos imigrantes do mezzogiorno chegados da virada do século XIX para o XX em diante – massa arredondada de farinha de trigo sem sofisticação, sobre a qual se deitam tomate, eventualmente aliche e, de vez em quando, mozzarella – recrutou em redutos tropicais improvisos de duvidosa criatividade, pois há pizzas para todos os gostos – e desgostos –, com destaque para as de paladar adocicado, com banana, ou com pêssego, ou abacaxi, ou até de brigadeiro.

Não será nenhuma surpresa se algum pizzaiolo paulistano mais atrevido vier a oferecer, numa noite dessas, uma rodela coroada de abacate, com o sugestivo nome de guacapizza. 

Certas heresias talvez se expliquem por uma peculiaridade bem local: com o tempo, os italianos foram perdendo a hegemonia do negócio, invadido por comerciantes de origem portuguesa, árabe e até oriental. O melting pot temperou a pizza. De todo modo, não há quem não reivindique para a sua pizza a legitimidade, ainda que remota, de uma origine controllata. 

Tão doméstica e tão íntima é a pizza que ela acabou emprestando à política o sentido ambíguo de uma conciliação à brasileira. Atribuem a expressão “acabar em pizza” ao jornalista Milton Peruzzi, de A Gazeta Esportiva. Ele acompanhava um encontro especialmente exaltado de dirigentes do Palmeiras numa mesa da Pizzaria Castelões, no Brás, desses que sugerem xingamentos, pescoções e sangue derramado. O futuro da equipe estava em disputa. Quando os ânimos entraram em combustão, a comida chegou à mesa e a paz imediatamente se fez. “Acabou em pizza”, foi a manchete da Gazeta no dia seguinte.

A mais antiga pizzaria brasileira ainda em funcionamento, a Castelões foi fundada em 1924. Foto: Divulgação.

Apaziguadora quando é preciso, é democrática por vocação, já que acessível a (quase) todos os bolsos. A pizza rustica, com massa grossa e densas camadas de tomate, como recomendam os experts napolitanos, acompanhou a trajetória dos Matarazzo desde que o primeiro dos Francescos chegou ao Brasil, procedente de sua Castelabbate, em 1881, trazendo alguns trocados, um carregamento de banha que afundou miseravelmente na Baía de Guanabara e o apelido típico, mas logo esquecido, de Don Ciccio.

A receita ancestral, sem adereços e sem pedigree, continuou comparecendo à mesa do segundo Francesco, o Conde Chiquinho, aí já na companhia de cristais Bacarat, porcelana inglesa e candelabros Christofle, mesmo quando o patriarca da família era dono da maior fortuna amealhada por um italiano emigrado fora do país de origem. 

Imagem: Divulgação.Para assegurar a ortodoxia de tão modesta iguaria, o primeiro dos Matarazzo recrutara na Itália um cozinheiro ligeiramente estrábico, cujo sobrenome – Gallucci – quase se perdeu, já que para todos os que eram brindados com seus dons de cozinha ele era conhecido como Antonio Cuoco. Era um meridionale, questo Antonio Cuoco, ele também nascido ao sul de Nápoles. Com a morte do pai, o Conde Chiquinho o herdou – e a pizza rústica sobreviveu gloriosamente.

Com episódios como este e outros, a pizza narra um pouco da história da capital paulista, desde que Carmino Corvino, o Don Carmenielo, napolitano do Brás, desistiu de vender suas pizzas em pedaços, num carrinho ambulante, para estabelecer, na Avenida Rangel Pestana, a sua Cantina Genoveva – certamente a primeira pizzaria de São Paulo, já desaparecida. Isso no início do século XX.

Do passado ao presente – eis o desafio de uma simpática obra que a Panda Books está lançando, com assinatura da jornalista e pesquisadora Gabriela Erbetta (Pizzarias Que Contam a História de São Paulo, 95 págs., 35,90 reais). Não esperem a apresentação aparatosa de um desses coffee tables que a gente recebe de brinde de fim de ano. É livro de leitura. 

Contando aquelas deliveries que só funcionam nos fins de semana em fundos de garagem, São Paulo tem cerca de 8 mil pizzarias (num domingo, mais de 600 mil pizzas são consumidas na cidade). O livro de Gabriela Erbetta contempla apenas as casas mais impregnadas de tradição, com ao menos três décadas de atividade.

CartaCapital escolheu as mais venerandas: 

Castelões (1924)
Rua Jairo Góis, 126, Brás.

Começou, sob o italiano Ettore Sinis-calchi, como cantina, servindo antepastos e bisteca à fiorentina. Com o novo dono, Vicente Donato, cujos herdeiros ainda tocam o negócio, descobriu a pizza ao estilo tradicional: alho e óleo à napolitana. Só recentemente aderiu a certas novidades, mas continua não aceitando cartões de crédito ou de débito. 

Paulino (1945)
Rua João Ramalho, 1033, Perdizes.

Um bilhar na Rua Pamplona, na região dos Jardins, passou a oferecer à clientela, para acompanhar as tacadas e a cerveja, pizza aos pedaços, expertise de Maria Aparecida, descendente de italianos e mulher de Nilson Paulino de Macedo, o proprietário. O negócio da pizza encaçapou o resto e logo a Pizzaria América passou a ter filial em Santo Amaro. Hoje, são quatro locais, o mais tradicional, de 1965, é o de Perdizes. O nome do fundador acabou prevalecendo. 

A margherita de Tarallo, que ele apresentou a SP na Speranza. Foto: Divulgação.

Jardim de Napoli (1949)
Rua Martiniano Prado, 463, Higienópolis.

Seu endereço original era no Cambuci, passou pelo Bixiga e, sob Toninho Buo-nerba, a alma da casa, recentemente falecido, transferiu-se para o atual CEP. As pizzas clássicas, como a margherita, campeã dos pedidos, sofrem a concorrência do xodó da clientela, o polpettone, bolo de carne moída recheado de muçarela, criação do inesquecível Toninho.  

Camelo (1957)
Rua Pamplona, 1873, Jardim Paulista.

O nome denuncia a origem levantina. Foi um libanês quem escancarou ao público o universo dos quibes e esfirras, cardápio logo ampliado para carnes, peixes e frango (a versão à passarinho ainda é um must), quando o português Manuel da Nóbrega assumiu a casa. Aos poucos, a pizza chegou e dominou. São 44 tipos de pizzas salgadas e 4 doces, capazes de contemplar os mais heterodoxos dos paladares.   

O nome Camelo convidava a quibes e esfirras. Pizza veio depois. Foto: Paulo Lima.

Speranza (1958)
Rua 13 de Maio, 1004, Bela Vista.

Francesco e Speranza Tarallo são de uma leva tardia de napolitanos imigrados, chegaram em São Paulo no Pós-Guerra, na década de 50. Abriram uma pizzaria na improvável Avenida Morumbi, mas logo corrigiriam o engano fixando-se no epicentro boêmio das cantinas italianas do Bexiga. Francesco vangloriava-se de ter introduzido no Brasil a pizza margherita, a qual, conta a lenda, foi batizada em 1889 em tributo à rainha consorte da Itália, Margherita di Savoia.   

Urca (1962)
Rua Brigadeiro Luís Antônio, 2.401, Paraíso.

O nome de nenhum aroma italiano surgiu para fazer pendant com a famosa padaria vizinha, a Doceria Pão de Açúcar, da família Diniz, origem da megalópica rede de supermercados. Os fundadores, o casal de portugueses Manuel e Maria Rosa Candelaria, tampouco trazia consigo o DNA da pizza, mas a vizinhança estrelada da Avenida Paulista tomou gosto. Manuel e Maria Rosa chegaram a oferecer uma pizza gigante, com 40 centímetros de diâmetro, mas em 2007 desistiram da ousadia. 

Angelo (1971)
Rua Sapucaia, 527, Alto da Mooca.

Numa Mooca que recende à cucina da nonna, esta é a pizzaria de mais longo curso. O Angelo do nome vem de um paulista de Jundiaí que se mudou para a capital, a fim de trabalhar no Cotonifício Crespi. Angelo Silveira passou a fazer bicos como pizzaiolo no hoje falecido Romanato. Abriu, em sociedade, a Pizzaria São Pedro na Rua Javari, em 1966, mas só em 1971 é que se estabeleceu por conta própria, no atual endereço.

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Por Nirlando Beirão em CartaCapital.

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