Hoje, neste contexto, margem também é centro e é possível ver, em bairros distantes, apresentações de criações que se somam a um cenário vigente para congregar as mais indispensáveis questões da humanidade contemporânea – seja de raça, gênero, padrões estéticos, condições sociais e políticas, consumismo, preconceitos, relações com a tecnologia e com os espaços urbanos, das possibilidades do corpo como universo expressivo etc.
Na cena paulistana, o espectador atento pôde acompanhar, nas últimas décadas, como a dança se desprendeu da tradição para ser identificada como contemporânea. Ainda quando a dança acontecia (ou era vista) no centro, o então Corpo de Baile do Teatro Municipal de São Paulo tornou-se Balé da Cidade de São Paulo para assumir um repertório produzido no momento presente, deixando de reproduzir obras do passado. Só para lembrar, a companhia que surgiu em 1968 para acompanhar óperas e para ser expressão do balé clássico, se transformou completamente a partir de 1973, quando Antonio Carlos Cardoso assumiu a direção artística do grupo. Na época, não só o Balé da Cidade mudava os rumos da dança, mas toda uma geração que incluiu indivíduos e grupos – de Marilena Ansaldi ao Ballet Stagium – até o Grupo Corpo, que surgiu em Belo Horizonte em 1975 e logo trouxe para São Paulo seu primeiro espetáculo, Maria Maria, um sucesso com foco na cultura brasileira, que ficaria seis anos em cartaz (no Brasil, Europa e América do Sul).
A estreia brasileira de Kazuo Ohno em 1986, no Teatro Anchieta do Sesc Consolação de São Paulo, foi um acontecimento extraordinário. Aos 80 anos, no auge da carreira, o mestre do butô provocou estranhamento e fascinação na mesma proporção, conquistando legiões de seguidores e admiradores apaixonados. Com este artista singular, aprendeu-se a enxergar dança sem limites de perspectiva. A seminudez de Kazuo Ohno no palco, sem qualquer apelo a artifícios, mostrava uma poesia de vida em cuja densidade todas as diferenças se encontravam.
Tantos transformadores e tantas renovações trouxeram absoluta amplitude para a criação e a fruição da dança. Tornou-se impossível identificá-la em moldes apreendidos no passado. Para os artistas da dança, as possibilidades se abriram e, entre os grupos brasileiros, os trabalhos autorais se intensificaram, frutos de pesquisas individuais ou coletivas, em busca das próprias verdades. Para o espectador leigo, apreciar dança significa se deixar surpreender por expressões que podem se misturar aos atos cotidianos mais banais e também pelo caleidoscópio de proposições que, na verdade, estão refletindo a existência humana – no momento presente e naquilo que ela tem de atávico.
Ideal seria se o ensino das artes, em sua amplitude histórica, fosse adotado nas escolas brasileiras, já na educação básica. Representaria o primeiro passo para que o cidadão brasileiro percebesse a importância do convívio com as artes em seu cotidiano – o que também desenvolveria familiaridade com as mais diversas expressões. Mais tarde, por senso crítico ou gosto pessoal, poderia fazer as próprias escolhas, mas conservando o respeito por todas as manifestações – um pouco o que se vê em cidades do interior da Europa, onde grandes eventos artísticos envolvem toda a população, sem que propostas diferentes ou supostamente ousadas escandalizem ninguém.