Enxergar a dança é um exercício de liberdade

Na pauliceia de 2018 a dança acontece do centro à periferia e este é um dado novo que emergiu na última década. Espaços cênicos despontaram em regiões distantes da região central, democratizando a difusão e ao mesmo tempo tornando visível uma produção que revela não ser mera minoria mas um conjunto de vozes potentes, capaz de enriquecer o panorama contemporâneo da dança paulistana.

Hoje, neste contexto, margem também é centro e é possível ver, em bairros distantes, apresentações de criações que se somam a um cenário vigente para congregar as mais indispensáveis questões da humanidade contemporânea – seja de raça, gênero, padrões estéticos, condições sociais e políticas, consumismo, preconceitos, relações com a tecnologia e com os espaços urbanos, das possibilidades do corpo como universo expressivo etc.

Ensaio do grupo de dança Pelagos, de Rubens Oliveira, em rua do bairro de Campo Limpo.Foto: Marcia Minillo.

Esta dança em perspectiva tão ampla pede atenção e tem o que ensinar para olhares acomodados – talvez inaugurando uma nova fase, com menos categorizações e mais liberdade. Historicamente, São Paulo sempre foi ponto de convergência para a produção de dança do Brasil – o que não é exatamente positivo, pois um país, principalmente com dimensão continental, demanda vários centros. Apesar da falta de políticas públicas efetivas e continuadas, capazes inclusive de desenvolver a circulação constante de espetáculos (que criaria e expandiria fontes de trabalho), os palcos da capital paulista tendem a ser pródigos para o espectador. Ao mesmo tempo que reverbera a produção local e nacional, a capital paulista também traz informações do mundo – mais ou menos intensamente, dependendo das crises financeiras e políticas do país, mas sempre.

Na cena paulistana, o espectador atento pôde acompanhar, nas últimas décadas, como a dança se desprendeu da tradição para ser identificada como contemporânea. Ainda quando a dança acontecia (ou era vista) no centro, o então Corpo de Baile do Teatro Municipal de São Paulo tornou-se Balé da Cidade de São Paulo para assumir um repertório produzido no momento presente, deixando de reproduzir obras do passado. Só para lembrar, a companhia que surgiu em 1968 para acompanhar óperas e para ser expressão do balé clássico, se transformou completamente a partir de 1973, quando Antonio Carlos Cardoso assumiu a direção artística do grupo. Na época, não só o Balé da Cidade mudava os rumos da dança, mas toda uma geração que incluiu indivíduos e grupos – de Marilena Ansaldi ao Ballet Stagium – até o Grupo Corpo, que surgiu em Belo Horizonte em 1975 e logo trouxe para São Paulo seu primeiro espetáculo, Maria Maria, um sucesso com foco na cultura brasileira, que ficaria seis anos em cartaz (no Brasil, Europa e América do Sul).

'Prelúdios' (1977), coreografia de Oscar Araiz para o Balé da Cidade de São. A principal revolução do elenco se deu a partir de 1973, quando entrou em cena Antonio Carlos Cardoso. Foto Gerson Zanini / Veja SP.

Personalidades transformadoras pontuaram a época, influenciando as gerações seguintes. Além de influir na criação, muitos deles também mudaram mentalidades em salas de aulas – como Klauss Vianna, Ruth Rachou e mesmo Renée Gumiel, para citar alguns poucos. O centro, na época não tão expandido como hoje, repercutia em uma diversidade de locais considerados alternativos, muitos deles concentrados no bairro da Bela Vista, ou Bixiga, onde o Teatro da Dança surgiu em 1975 para ser um palco propulsor de inovações e provocações.

Quando Klauss Vianna assumiu a direção do Balé da Cidade em 1982 e formou um grupo experimental com a nata de bailarinos que representava os experimentalismos de São Paulo, mais um acontecimento histórico ocorreu, no processo de rupturas e apagamento de fronteiras que a dança foi desenvolvendo na capital paulista e no Brasil. Paralelamente, a produção autoral e independente foi se expandindo – também como um ato de resistência que, de alguma forma, se mantém até hoje.

Vale lembrar que os fins da ditadura militar em 1985 e o da censura em 1988, foram determinantes para que a cena brasileira das artes – e consequentemente da dança – se expandisse. Inovadores históricos viraram novidade no Brasil. A partir do final da década de 1980, festivais e novas programações também modificaram o olhar do público, apresentando um rol de sumidades como Martha Graham, Merce Cunningham, Trisha Brown, Pina Bausch, Mats Ek, William Forsythe e vários outros, além de uma nova geração internacional de coreógrafos e companhias contemporâneas que representavam a nova dança europeia – e do mundo.

Pina Bausch (1940 - 2009) durante entrevista em 2008 em Dusseldorf, na Alemanha. Foto: Deutsche Welle.

A estreia brasileira de Kazuo Ohno em 1986, no Teatro Anchieta do Sesc Consolação de São Paulo, foi um acontecimento extraordinário. Aos 80 anos, no auge da carreira, o mestre do butô provocou estranhamento e fascinação na mesma proporção, conquistando legiões de seguidores e admiradores apaixonados. Com este artista singular, aprendeu-se a enxergar dança sem limites de perspectiva. A seminudez de Kazuo Ohno no palco, sem qualquer apelo a artifícios, mostrava uma poesia de vida em cuja densidade todas as diferenças se encontravam.

Tantos transformadores e tantas renovações trouxeram absoluta amplitude para a criação e a fruição da dança. Tornou-se impossível identificá-la em moldes apreendidos no passado. Para os artistas da dança, as possibilidades se abriram e, entre os grupos brasileiros, os trabalhos autorais se intensificaram, frutos de pesquisas individuais ou coletivas, em busca das próprias verdades. Para o espectador leigo, apreciar dança significa se deixar surpreender por expressões que podem se misturar aos atos cotidianos mais banais e também pelo caleidoscópio de proposições que, na verdade, estão refletindo a existência humana – no momento presente e naquilo que ela tem de atávico.

Ideal seria se o ensino das artes, em sua amplitude histórica, fosse adotado nas escolas brasileiras, já na educação básica. Representaria o primeiro passo para que o cidadão brasileiro percebesse a importância do convívio com as artes em seu cotidiano – o que também desenvolveria familiaridade com as mais diversas expressões. Mais tarde, por senso crítico ou gosto pessoal, poderia fazer as próprias escolhas, mas conservando o respeito por todas as manifestações – um pouco o que se vê em cidades do interior da Europa, onde grandes eventos artísticos envolvem toda a população, sem que propostas diferentes ou supostamente ousadas escandalizem ninguém.

Kazuo Ohno (1906-2010), mestre no butô em espetáculo no SESC de São Paulo. Foto: Emídio Luisi.

Ver a dança de hoje também significa eliminar moldes convencionais, quando for necessário enxergá-la em simbiose com outras artes. Ou ainda  perceber os intérpretes-criadores, como muitos bailarinos preferem ser chamados. Não mais executar passos de uma coreografia pronta, mas participar da criação, vivenciá-la, dar sua contribuição e deixar suas marcas é o que cada integrante de um elenco pretende hoje.

Nesse contexto, onde se situa o balé clássico? Como na ópera e na música de concerto, a tradição histórica também deve se manter viva. Porém, a encenação de repertórios clássicos e a manutenção de companhias intensamente capazes, significam altos investimentos. No Brasil, apesar de inúmeros bailarinos clássicos talentosos, quase não há companhias estruturadas para acolhê-los (aquela que era referência, o Ballet do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, está inativa por conta da crise política e econômica do Estado do Rio). Ao mesmo tempo, a tendência em se vincular exibicionismo técnico a balé clássico, com bailarinos mais voltados para a execução do que a interpretação das obras, ainda é ranço vigente no País, reforçando superficialismos.

 A dança inexplicável, leve e sem peso de Merce Cunningham (1919-2009) em prova de fotos para divulgação. Foto: Merce Cunningham Dance Company Archive.

Praticado de maneira mais orgânica, como mais um recurso técnico e de expressão, o balé clássico está presente na linguagem de muitos criadores da dança contemporânea (ou extemporânea, como já disse a pesquisadora Thereza Rocha, se quisermos evitar categorizações e transitar em dimensão mais atemporal). A dança revolucionária de Merce Cunningham, por exemplo, se fundamentou na técnica clássica para gerar novas e infindas possibilidades. Outra abordagem inovadora se realizou com William Forsythe, que estabeleceu um diálogo de contraposições com a fisicalidade clássica, reinventando-a como um balé contemporâneo.

Se a proposta desta conversa escrita é atingir o espectador ou leitor leigo, procurando despertar seu interesse para o que a dança oferece à sua volta, vale lembrar comentários preciosos de Pina Bausch (1940-2009), a coreógrafa alemã cujo trabalho todos deveriam sorver em algum momento da vida. Segundo Pina, tudo existe simultaneamente, lado a lado e em conjunto – e tudo tem o mesmo valor e a mesma importância. Seu trabalho foi pautado pelo grande respeito pelas mais variadas formas de viver e encarar a vida. Tal postura se refletiu em seus espetáculos e no elenco de sua companhia, a Tanztheater Wuppertal, aglutinadora de pessoas de todos os continentes, das mais diversas culturas. Note-se: pessoas e não dançarinos, como Pina preferia chamar seus extraordinários intérpretes.

Em tempos sombrios de intolerância e preconceitos à flor da pele na sociedade brasileira, um chamamento para a dança significa, acima de tudo, um convite ao desprendimento – ao resgate de um olhar curioso e sem estereótipos, que permita enxergar a arte como um canal de evolução, convivência, tolerância, troca, de assimilação de diferenças e, acima de tudo, como exercício da liberdade.

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Ana Francisca Ponzio é Jornalista, crítica, curadora e produtora de eventos na área de dança e, sobretudo, espectadora de dança. Artigo publicado originalmente na eOnline do SESC. Edição: São Paulo São.

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