Exposição retrata mente anárquica de Glauco, da política ao Santo Daime

Os atrasos e a falta de senso de compromisso não fizeram do cartunista Glauco um profissional que nenhuma redação queria contratar. Longe disso: “Era uma ‘sem-noçãozice’ que, em outra pessoa, soaria cínica, mas nele não”, diz Laerte, em depoimento gravado em vídeo para a mostra “Ocupação Glauco“.

A ideia de um sujeito meio torto e excepcionalmente talentoso vai se formando entre um depoimento e outro.

Em vídeo, o irmão Pelicano, também desenhista – ofício compartilhado ainda com a mãe –, conta histórias de como Glauco, desde a infância, se desligava do mundo e deixava as obrigações em suspenso.

Em registro no pequeno livro lançado para acompanhar a exposição, o designer e ex-editor de arte da Folha Jair de Oliveira retoca o traço da indisciplina. “O cara às vezes não aparecia no dia de fazer a charge”, conta.

Com seu jeito à toa, Glauco Vilas Boas publicou regularmente na Folha de 1984 até a morte, em 2010. Ele e o filho Raoni foram vítimas de um assassino confesso.

Como outros 29 projetos que também ocuparam o térreo do Itaú Cultural nos últimos sete anos –entre eles, foram temas Zé Celso, Nelson Rodrigues e Laerte –, “Ocupação Glauco” procura dar conta justamente da relação entre personalidade e obra.

Descobrimos ali que Dona Marta e sua volúpia, Geraldão com suas seringas e o ciumento Casal Neuras são frutos de uma mente anárquica – e que, reconhecida como tal, amigos e chefes sabiam perdoar.

Seu carisma tinha a capacidade de seduzir inclusive a polícia. Conta o desenhista Emílio Damiani, também no livro, que Glauco, quando foi preso em Pinheiros por portar “um negocinho de cocaína no plástico do seu cigarro”, acabou liberado depois de desenhar um ajudante do guarda.

Charge do cartunista exposta no Itaú Cultural. Imagem: Divulgação.

Daime e Presidentes 

No fundo da mostra, apresenta-se Glauco por outro prisma: foi recriado o hexágono colorido de bandeirinhas do teto do Céu de Maria, igreja que ele fundou em Osasco para a cerimônia do Santo Daime. O artista foi adepto da celebração em torno do chá de ayahuasca desde os anos 1980 e se tornou líder religioso. Após sua morte, a mulher, Beatriz Veniss, deu continuidade às atividades do centro.

Foi ela quem forneceu boa parte do material agora exposto, incluindo o acordeão que ele tocava nas cerimônias do Daime e estudos que, embora tenham dado origem a trabalhos de jornal, nunca foram publicados ou exibidos antes.

Glauco não costumava registrar as datas de sua produção, e a exposição acaba deixando o visitante sem referências temporais. São centenas de charges e tirinhas exibidas sob critério da interatividade.

Há, por exemplo, as charges de conteúdo mais erótico, como a de Geraldão batendo “90 bronhas” no banho, que podem ser vistas por um buraco de fechadura – referência ao perfil voyeur de um personagem ou outro, e à abertura a sentidos psicanalíticos.

Outra preciosidade – esta, com referência temporal – são duas edições do “Manual do Metalúrgico de Osasco”, ilustrado por Glauco entre 1982 e 1984, publicado pelo sindicado da cidade e emprestado à exposição pela entidade.

Destaca-se também a seção dedicada às charges políticas, muitas delas publicadas na Folha, e as referências aos presidentes que ele retratou – Collor, Itamar, FHC e Lula.

Charge do cartunista exposta no Itaú Cultural. Imagem: Divulgação.

Livro

Não vendeu em banca nem em livraria. “Minorias do Glauco Nº 1”, primeiro livro do cartunista, foi publicado em 1982 pelo Lira Paulistana, casa de shows que funcionou nos anos 1980 na praça Benedito Calixto, em Pinheiros –a mesma que lançou os músicos da Vanguarda Paulista.

Quem fez o resgate da preciosidade, editada pelo cartunista ainda na juventude, em parceria com José Antonio Silva e Ribamar de Castro, foi Toninho Mendes, que editou na Circo Editorial as revistas “Geraldão”.

Para a publicação, Mendes pediu a velha impressão a um amigo e saiu em busca de patrocínio. Agora, o livro terá sua segunda edição, com lançamento previsto para o fim de agosto, no Itaú Cultural.

Ele diz que o volume revela personagens importantes na trajetória de Glauco. Dona Marta e Geraldão aparecem em suas páginas. Também há tiras retratando brigas de casais, o que ele julga ser o berço do ciumento Casal Neuras.

Além de ter investido no resgate da obra, Mendes participa da “Ocupação Glauco” com um depoimento em vídeo, contando sobre as cartas que ele e Glauco recebiam de leitores e embarcando no clima de delírio dos quadrinhos que sugeriam desejo sexual entre Geraldão e sua mãe.

“Como a gente era muito esculhambado, os caras mandavam cartas totalmente insanas para nós”, conta Mendes. “Teu pinto é pequeno?” e “tem baseado aí na redação?”, por exemplo, eram duas perguntas recorrentes de leitores, cita o editor.

Ocupação Glauco
Onde: Itaú Cultural, av. Paulista, 149, tel. (11) 2168-1776.
Quando: ter. a sex., das 9h às 20h; sáb., dom. e feriados, das 11h às 20h; de 9/7 a 21/8.
Quanto: grátis.
Classificação: 12 anos.

Minorias do Glauco Nº 1
Autor: Glauco Vilas Boas
Editoras: Peixe Grande e Expressão e Arte.
Quanto: R$ 19 (72 págs.).

***
Gustavo Fioratti para a Ilustrada da Folha de S.Paulo.

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